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sábado, 11 de abril de 2015

SER POLICIAL



Qualquer árvore que queira chegar no céu precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar o inferno. E cada vez mais, acentua-se a necessidade de sermos fortes.
Mas não há uma fórmula mágica que nos faça chegar à força sem que antes tenhamos provado das fraquezas humanas de nós mesmos.

Por isto ser forte é mostrar confiança quando se está com medo.
Para sermos fortes temos que remar contra as tempestades;
aprender a fazer muralhas ; Ter ouvidos atentos; saber escolher os momentos do silêncio; rir dos raios em meio ao barro enquanto bebemos da chuva.... E depois de termos sugado toda nossa força, sermos capazes de desmoronar em uma cama , dormir o sono dos justos mesmo sabendo que amanhã tem mais.
Para estarmos ombro a ombro com os melhores, temos de ser um deles, pois....

TOCAR O CÉU NUNCA TEVE A VER COM A ALTURA !

sexta-feira, 10 de abril de 2015

DIFÍCIL DECISÃO







O trabalho de um policial é extremamente difícil. Implica executar suas atividades sob intensa pressão, expor a risco a própria vida e tomar decisões que podem influenciar profundamente a vida das pessoas.


Aprendi esta assertiva quando ainda frequentava as salas de aula da Academia da Polícia Militar, nos idos anos de 2002 e 2003, época em que eu não tinha certeza se esta era a profissão que gostaria de exercer durante trinta anos da minha vida. Hoje já não tenho mais essa dúvida, pois gosto muito do serviço policial.


A cada jornada de trabalho, constato que as dificuldades ora mencionadas são verdadeiras e, além disso, mexem muito com o meu estado psicológico. Trabalhar sob pressão e ver a morte de perto diariamente já não me abalam muito. Por outro lado, as decisões que tenho que tomar constitui a parte mais complicada da minha profissão. Como exemplo disso, devo relatar um fato ocorrido com uma guarnição que estava sob meu comando.


No dia 05 de junho de 2006, estávamos realizando uma operação policial na entrada do bairro Morro Alto, quando abordamos um ônibus. Na ocasião, um dos passageiros foi preso porque usava um documento falso para isentar-se do pagamento da passagem. O motorista e o trocador do coletivo foram arrolados como testemunhas do fato e em seguida foram liberados para continuar a viagem.


Para minha surpresa, ao cadastrar a ocorrência no sistema informatizado, constatei que havia um mandado de prisão em desfavor de uma das testemunhas, o motorista, com base no artigo 121 do Código Penal Brasileiro (homicídio). Tal fato causou-me espanto, porque eu sabia que o motorista trabalhava na empresa havia muitos anos e até então ele gozava de boa credibilidade.


No entanto,
Perguntei se ele realmente havia matado o pistoleiro e o suspeito negou novamente, acrescentando que sempre foi trabalhador e desde que veio para Vespasiano labutava na mesma empresa e morava no mesmo endereço com a esposa e a filha deles.


Foi neste instante é que me vi diante daquilo que considero mais difícil na vida de um policial: tomar uma decisão que influenciaria profundamente a vida de uma pessoa. Evidentemente que pelo aspecto da legalidade eu deveria prendê-lo sem pestanejar, afinal havia um ordem judicial para tanto. Mas, por outro lado, num país onde impera a impunidade, onde ladrões de colarinho branco, traficantes de drogas e assassinos contumazes andam livremente pelas ruas porque conseguem driblar facilmente nosso arcaico sistema de persecução criminal, colocar aquele reconhecido trabalhador numa cadeia poderia significar um ato incoerente, considerando que ele estivesse falando a verdade sobre sua inocência.


De um lado, uma ordem judicial, do outro, a fala de um trabalhador. Pensei em liberar o motorista e orientá-lo a procurar um advogado para resolver a pendência na justiça. Resolvi não tomar a decisão sozinho, embora fosse minha competência.


Dada a palavra aos meus companheiros, fiquei ainda mais confuso. O Soldado Felipe entendia que deveríamos cumprir o mandado, sustentando: “afinal quem nos garante que esse homem é mesmo inocente”. Já o Cabo Araújo achou que era melhor “dar um boi” para o motorista, dizendo-me que sua experiência profissional o fazia acreditar na inocência dele.


Diante do impasse, reportei-me aos orde o mínimo que eu deveria fazer como responsável pela aplicação da lei era questionar o cidadão sobre a acusação a ele imposta. Desloquei minha guarnição até a empresa onde ele trabalhava e esperamos o retorno do ônibus coletivo. Deparamos com um senhor de fala mansa, fisionomia pacata, vestido com o seu uniforme de trabalho. Ao ser perguntado sobre o mandado de prisão, ele negou veementemente ter motivos para tal, todavia seu olhar denunciava a mentira. Cogitou haver perdido seus documentos e possivelmente alguém tê-los usado para incriminá-lo. Assim, o convidei a me acompanhar até a delegacia para esclarecer a situação, alertando-o para o risco de ele ser preso em circunstância piores.

No trajeto para a delegacia, tratamos o motorista com seriedade e respeito. Por esse motivo, angariamos a sua confiança. Ele relatou-nos que há vinte anos havia sido acusado de ter assassinado um pistoleiro no Estado do Mato Grosso; que foi ouvido pelo delegado naquela época e liberado porque não havia provas contra ele. O suspeito nos afirmou também que resolveu deixar o Estado porque estava sendo ameaçado por parentes da vítima.
namentos jurídicos e lembrei-me que o mandado de prisão preventiva não se extingue enquanto não for cumprido. Assim, mais cedo ou mais tarde, aquele senhor seria preso e talvez não recebesse o mesmo tratamento que estávamos lhe dando. Resolvi então cumprir o mandado e mostrar ao preso o que ele deveria fazer para esclarecer os fatos.


Já na Delegacia, apareceu uma senhora acompanhada de uma menina. Tratava-se, respectivamente, de esposa e filha do suspeito. Educadamente a senhora me pediu para conversar com o marido. A menina, já no colo de seu pai, me olhou com rancor. Parecia que ela já sabia o que iria acontecer com seu genitor e que eu era o responsável por ele estar ali. Escutei aquela senhora dizer: “Isso aconteceria a qualquer momento, meu amor”. Percebi que tudo que tínhamos conhecimento até aquele momento era verdade, com exceção das circunstâncias em que ocorreu o crime no qual aquele cidadão figurava como acusado.


A presença dos familiares do motorista na delegacia em consonância com emprego lícito que ele desempenhava realçaram minhas dúvidas acerca da decisão que adotei, o que foi desmistificado quando nós saíamos da delegacia e a esposa do detento me disse a seguinte frase: “ Obrigado, meu filho, por não ter judiado dele. Vai com Deus e que o Senhor Jesus abençoe o seu trabalho”. Tais palavras me mostraram que eu fui justo, como deve ser todo policial, porque apenas executei minha função e em momento algum tirei a dignidade daquele homem.


No retorno ao patrulhamento, o clima dentro da viatura não era de euforia, como ocorre quando prendemos um “vagabundo nato”. Ao comentarmos o caso do motorista, o Soldado Felipe disse que nada nesta vida acontece por acaso. Eu também acredito nisso.


Que seja feita a justiça; se não for a dos homens, que seja a divina.


Fim

Autor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM - obra escrita em 08/06/2006

sábado, 21 de junho de 2014

Educação em Direitos Humanos na Área de Segurança e Justiça

RICARDO BALESTRERI

O tema que neste momento nos congrega,a Educação em Direitos Humanos na Área de Segurança e Justiça, é de crucial importância para a história brasileira. Convido-os a refletirmos um pouco sobre a fundamentalidade dos operadores de segurança pública - policiais, bombeiros, guardas municipais - como agentes, promotores, sustentadores e qualificadores da democracia, até para que, no âmbito adequado dos direitos humanos,possamos repensar o sentido das instituições políciais, dos corpos de bombeiros, das guaradas. Esse pensar crítico e construtivo de paradigmas novos para a área é tardio, reconheçamos, na sociedade brasileira. Então, é preciso que nos aligeiremos, até mesmo em função da crise sistêmica de violência e criminalidade que ameaça a todos os cidadãos.
Quero fazer tal reflexão à partir da perspectiva de um militante de direitos humanos, que há
mais ou menos 30 anos vem dedicando a vida a esta causa, e que, há uns 19 anos, descobriu
o valor de jogar seu maior foco de atuação na área da segurança pública. Sei hoje, convictamente, que se não trabalharmos educação em direitos humanos com a polícia, não
teremos as transformações substanciais que buscamos para qualificar a democracia brasileira.
As profissões de operadores de segurança pública talvez sejam aquelas de mais forte impacto coletivo. Assim, como pessoa dedicada à militância pelos direitos humanos, em busca de um mundo novo possível, sou profundamente grato por haver descoberto a polícia , os bombeiros e os guardas. Trabalhar com eles enriquece sobremaneira minhas possibilidades existenciais porque, ao atingi-los, sei que estamos atingindo a multidão que segue - ainda que, na maioria das vezes, insconscientemente - a liderança e a referencialidade que eles representam.
Todos sabemos -é quase uma banalidade essa consciência- que o destino do Brasil passa necessariamente pela educação do seu povo. Todos sabemos que não há nação que tenha construído desenvolvimento humano que não o tenha feito através da educação. Se tomarmos como exemplo o norte da Europa, precisaremos lembrar que aqueles países - muitas vezes dignos da admiração planetária, por serem sociedades de bem-estar – fizeram suas revoluções através da educação. A Noruega - para ilustar- hoje uma potência em termos de justiça social, a menos de cem anos atrás era um País pobre, constituído por um povo pobre. Se alguém lembrar que ela tem petróleo, precisarei revidar com nossa autosuficiência, apesar das dimensões continentais de nosso país e de nosso contingente populacional; Se alguém lembrar que ela utilizou empréstimos internacionais, precisarei dizer que, fosse esse o diferencial, aqui estaríamos vivendo em um paraíso. Não foi um país colonialista, não é um império. Então, o que ocorreu por lá? A resposta é: a tecitura uma grande rede de cidadania, gerada por um processo histórico de educação, que não se confundiu e não se confunde com mera escolarização. Escolarização, sim, também, mas educar não pode ser apenas incluir as pessoas na escola. Podemos escolarizar o povo inteiro e ele continuará ignorante, se não o fizermos em uma perspectiva de valores solidários.
A causa dos direitos humanos, com o seu rol de valores é, assim, a meu ver, a grande alavanca da educação, a melhor ferramenta civilizatória para o nosso intervir. Sabemos hoje, mesmo no campo da economia, que um País não melhora a sua situação sem qualificar a sua mão-de-obra. Ainda assim, não estamos falando de educação em toda a sua grandeza. Estamos falando de uma pequena parte da educação, que é a "instrução".
Confundimos, muitas vezes, educação com instrucionismo. O sistema capitalista fala muito em "educar a mão-de-obra". É um reducionismo. Precisamos, é verdade, instruir a mão-de-obra. Mas só podemos educar as pessoas... Educar é, obrigatoriamente, refletir sobre valores, provocar o desenvolvimento - no dizer piagetiano - de intelectualidades e moralidades autônomas. Educar é estimular a capacidade de olhar criticamente para a realidade, valorar aquilo que é olhado sob a perspectiva da convivência solidária, e tomar decisões intelectuais autonomamente orientadas. Mas, mais do que decisões intelectuais, educar é provocar posicionamentos atitudinais, práticos, que tenham o poder de modificar e melhorar a qualidade da vida da gente e de nosso entorno. Juízo moral, neste sentido, não é apenas discurso crítico, catarse poliqueixosa.Discurso crítico é diferente de consciência crítica. No Brasil, por exemplo, a gente se queixa muito, o tempo inteiro, dos poderosos, que não modificam a qualidade das nossas vidas. Trata-se de um discurso e de uma expectativa sebastianistas. Esperamos que alguém ou que alguma categoria social nos venha tirar de nossa eterna miséria, ignorância, subdesenvolvimento. Esperamos e protestemos,há mais de 500 anos, e isso não acontece. É porque discurso poliqueixoso não muda nada e acomoda. E o exemplo, que "tem que vir de cima”? Tem? Mas não vem. As elites não sentem-se nem de perto estimuladas pelas nossas esperanças ingênuas. Na verdade, não mudamos a nós mesmos e à realidade que nos cerca porque vivemos esperando o exemplo que tem que vir de cima. Não vai acontecer. O zen-budismo está correto ao propor que a desilusão é uma benção. Enquanto estamos iludidos, não fazemos nada. O exemplo nunca vem de cima. O exemplo sempre vem de baixo. As dinâmicas de auto-preservação do poder a qualquer custo - pela direita, pelo centro e inclusive pela esquerda - impedem que o exemplo venha de cima. Assim, quando o poder se expressa com justiça, é mero reflexo. Podemos ter e temos indivíduos nas elites que dão seu tom particular de bom exemplo, mas isso não se reproduz em escala de classe. Não há, na história, nenhum exemplo de suicídio de classe, pela abdicação coletiva de privilégios.
Quanta candura, a nossa! Ou "arregaçamos as mangas" e fazemos um mundo diferente lá onde estamos - onde somos professores, onde somos militantes de direitos humanos, onde somos agentes de saúde, onde somos policiais, onde somos guardas, onde somos bombeiros - ou esse mundo não será melhor jamais. Discurso e queixas não transformam a realidade!
É claro que tal consciência só pode ser acessada através de um processo de educação para valores.Assim, não pode haver desenvolvimento com bem-estar onde não há educação, e não pode haver educação onde não se constroem as chamadas "redes de engajamento cívico". Onde os cidadãos - de baixo pra cima - não se organizam, não mudam a própria vida, é balela falar em transformação, é balela falar em bem-estar, é balela falar em políticas públicas. Os governos sempre são o reflexo do nível de organização ou de desorganização, de consciência ou de inconsciência, de mobilização ou de desmobilização da população que, de maneira passiva ou ativa, os sustentam. É uma crueldade dizer que "cada povo tem o governo que merece". Uma crueldade e uma injustiça. O povo brasileiro, por exemplo, de forma geral trabalhador, honesto, criativo e cordial, historicamente mereceria mais. Contudo - em uma visão não paternalista - é justo, adequado e pedagógico reconhecermos que cada povo é responsável pelos governos que tem. Passiva ou ativamente responsável. Não resolve, portanto, implorarmos que alguém "lá em cima" tenha uma crise de piedade, enquanto nós, eternos filhos e filhas, aguardamos um "colinho" das autoridades, uma atençãozinha das elites, uma benessezinha qualquer.
Tal reflexão encaixa-se perfeitamente, também, na área da segurança pública.Precisamos substituir velhos paradigmas. Se reconhecemos que educação é fundamental para transformar e dar bem-estar ao país, precisamos, igualmente, perceber que os tradicionais modelos e agentes da educação são insuficientes. Se, há 15 ou 20 anos, falássemos em "educadores", a quem estaríamos lembrando? Com certeza, apenas dos professores e dos pais. Os professores e os pais são educadores? Naturalmente. No mundo contemporâneo, contudo, com sua dispersão fragmentadora, são insuficientes. Educação hoje, na perspectiva piagetiana de construção da autonomia moral e intelectual, não pode prescindir das categorias profissionais de mais forte impacto popular: particularmente, os já citados professores, mas também, e com igual força, os agentes de saúde e os operadores de segurança pública. Por que destacar essas três? Porque têm a seu favor elementos coletivos que as diferenciam das demais. Entre eles, fortes elementos de caráter simbólico. Agentes de saúde, professores e operadores de segurança pública são as categorias emblemáticas do poder público mais presente entre a população. E, ainda que seus estilos de atuação possam ser muitas vezes questionáveis, não abandonaram o povo. Lembremos, aqui, que vivemos em um país que entregou sua gente à orfandade. Contudo, essa gente não foi abandonada pelos agentes de saúde, pelos professores, pelos guardas, pelos policiais, pelos bombeiros, que-muitas vezes, lamentavelmente - se portam inadequadamente, mas não se evadiram não se retiraram, não são indiferentes. Desta forma, os convido a uma reflexão focada em paradigma novo, onde se incluem, como categorias pedagógicas, os policiais, os bombeiros, os guardas municipais.
Nesta altura da reflexão, algum companheiro policial, por exemplo, pode pensar que "o povo também nos maltrata, o povo não nos reconhece". Só aparentemente. Do ponto de vista do inconsciente pessoal e coletivo, as pessoas têm no policial uma referência paterna materna.
Tomando emprestadas as ferramentas da psicanálise em relação ao papel da autoridade, não seria nenhuma impropriedade dizermos que o operador e a operadora de segurança pública evocam a figura do pai e da mãe. Não se confunda, contudo, o papel social paterno-materno com qualquer forma de paternalismo ou maternalismo. No caso em questão, tratamos de "pais" e "mães" que precisam encarnar fortemente a função de balizadores, de contenedores e limitadores. Mas tal tarefa é grandiosamente acolhedora e asseguradora, junto a uma população que, como dissemos acima, é órfão de quase tudo. No caráter simbólico do impacto, que ora discutimos, essa é uma das mais fundamentais razões da importância dos operadores de segurança pública.
Se há um casamento entre a potência simbólica e a postura atitudinal e comportamental dos
sujeitos, ou seja, se estamos tratando de "bons policiais", essa postura paterno-materna, através do exemplo, vai se fazer reproduzir entre a população como mudança qualitativa de valores. Pais e mães são muito importantes porque indicam caminhos, através de suas atitudes. Quando olho um policial na rua, com a dignidade que ele às vezes desconhece que tem, sempre penso que não se trata de um mero ordenador da segurança. Isso,como missão,
isoladamente, seria muito pequeno e pobre para ele. Trata-se, muito mais, de uma liderança
popular. Mesmo que essa liderança desconheça seu papel (inconsciência que atuará como elemento redutor ou desviante). Se, ao contrário, houver assunção plena da vocação de cuidador social, o policial carregará com ele, pelos melhores caminhos, a multidão do seu entorno.
Como não é a conduta moral, contudo, que define solitariamente a força do impacto, mas sim o mandato popular de autoridade, um "mau policial" também carrega a multidão. Só que para o abismo da permissividade, da violência, da corrupção. Quando os "pais" se permitem também permitem, inconscientemente, aos "filhos". É o chamado "paradoxo pedagógico". Não podemos proibir o que fazemos, não podemos educar pelo discurso quando nossas práticas dizem o contrário, não podemos construir o respeito se desrespeitamos, não podemos conclamar ao que negamos. Ralph Emerson disse que "o que somos fala tão alto que não se escuta o que dizemos". O que os policiais são fala tão alto que não se escuta o que eles dizem. É por isso que os agentes de segurança pública não podem atuar com base no senso comum, na lógica ordinária da eliminação. Por desespero, por exaltação emocional, por emoções explicavelmente desordenadas - diante da violência e da dor- o senso comum propõe, na prática, que "problemas a gente não resolve, a gente elimina". Propõe ao policial - em verdadeiro canto de sereia - que ele seja uma espécie de herói as avessas, eliminando os que representam perigo. Contudo, se o policial cede, acaba desprezado pelos mesmos que o persuadiram. É que, de alguma forma, intuem que a autoridade não se deu o devido respeito, abdicou de princípios, negociou o inegociável, burlou as regras que deveria defender e, por isso, tornou-se, também, potencialmente perigosa. Além de tudo, aumentou a sensação de solidão, de abandono moral, de falta de limites. Os "pais" e as "mães" precisam fazer o que pregam, ter firmeza, não ceder às chantagens emocionais e aos apelos do desequilíbrio. Compreende-se que um cidadão reaja enfurecido diante da dor causada pela violência e pelo crime. O Estado e seus agentes, contudo, precisam se pautar pela cientificidade, pela racionalidade, pelo inabalável exemplo.
Usando novamente - com alguma heterodoxia- de uma categoria da psicologia, poderíamos
dizer que os policiais são figuras arquetípicas. Os junguianos dizim que os arquétipos são "estruturantes da moralidade".
 Grosso modo e com ousadia sintética, arquétipos são como "figuras-símbolo", "pacotes simbólicos", carregadores de um conjunto de características que expressam mas também constoem o inconsciente coletivo.O policial, o guarda, o bombeiro, em tal contexto, bem se encaixam no arquétipo heróico. Lembremos que toda educação moral se vale o tempo todo de categorias arquetípicas. Minha geração, nos anos sessenta, teve a sorte de contar, na então incipiente mídia eletrônica, com uma figura policial arquetípica grandemente influente nos valores que muitos de nós íamos erigindo como crianças: "o vigilante rodoviário", um policial com pinta de herói, com discurso de herói e, o mais importante, com práticas de herói que coadunavam com o discurso que propunha. Discordo de quem disse "pobre povo o que precisa de heróis". Tal assertiva cai bem para os iluminados mas não é pragmática e nem realista. O povo precisa, sim, de mitos heróicos, porque a educação não ocorre de forma espontaneísta. A ausência e a conspurcação de tais mitos é que nos tem levado a uma perigosa relativização absoluta de valores, ao hedonismo, ao narcicismo, "a levar vantagem em tudo". Isso não quer dizer que os policiais, por exemplo, precisem ser perfeitos, mas que não podem abdicar de um mínimo de coerência com os princípios morais e as leis pelas quais juraram zelar.O policial, o guarda municipal, o bombeiro, sempre estão "na vitrine". Pode parecer um fardo para eles. Mas o fardo é leve se tomarmos em conta que é precisamente do poder de impacto que reside sobre tal exposição que brota a gloriosa realização de poder influir sobre os rumos da sociedade. Para quem fez conscientemente sua escolha profissional, há, aí, o caldo de cultura para uma vida plena de sentido. Por isso, todo operador de segurança pública é potencialmente um agente de transformação social. Triste é se ele não sabe disso e enterra no burocratismo ou na repressão desqualificada os seus talentos, esquecendo que é um líder popular. Assim, educar os operadores de segurança pública para os direitos humanos , não é meremente adestrá-los no conhecimento das leis, pactos e tratados, mas resgatar, avivar nos mesmos, a consciência da grandeza da missão que escolheram.

Se os policiais, guardas e bombeiros souberem o valor que têm e o que representam para a sociedade, nem precisaremos falar-lhes sobre os direitos humanos, porque serão, naturalmente, os mais entusiásticos agentes promotores dos mesmos.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O GOSTO DA FUNÇÃO POLICIAL




O GOSTO DA FUNÇÃO POLICIAL
"Não espere reconhecimento, simplesmente faça seu trabalho!"

O Distrito estava um alvoroço com muitas risadas e piadas devido ao fato de que os novos policiais, incluindo eu, estariam chegando hoje às ruas pela primeira vez. Após meses de uma quantidade sem fim de aulas, provas, trabalhos e seminários, nós finalmente havíamos concluído a academia de polícia e estávamos prontos para integrarmos o efetivo de nossa lotação.

Tudo o que se via eram filas de “novinhos” com sorrisos imensos e portando seus brilhantes distintivos policiais. Encontrávamo-nos na sala de reuniões e mal podíamos nos manter sentados tal a ansiedade para que chegasse logo nossa vez de sermos apresentados e recebermos nossas atribuições ou, para os não iniciados, nossa própria porção da cidade para servir e proteger.

Foi então que ele adentrou no recinto. Um “armário” de elevada estatura e musculatura ainda definida, tinha os cabelos grisalhos e olhar tão duro e frio que provocava um certo nervosismo, mesmo se não estivesse olhando diretamente para você. Sua reputação era a de ser o mais experimentado policial que já trabalhou em nossa cidade. Tinha sido do departamento por mais tempo que qualquer um podia se lembrar e aqueles anos todos de serviço o tinham tornado uma verdadeira lenda.

Os novos policiais, ou “novinhos”, como ele nos chamava, tanto o respeitavam como temiam. Quando ele falava, mesmo os policiais mais experientes prestavam atenção. Era um grande privilégio um dos novinhos estar por perto quando ele contava as histórias dos velhos tempos. Mas sabíamos nossos lugares e nunca o interrompíamos por medo de sermos  expulsos da roda. Ele era respeitado e reverenciado por todos que o conheciam.

Até depois do meu primeiro ano no departamento, ainda não o tinha visto se dirigir e falar com nenhum dos novinhos por muito tempo. Quando falava, tudo o que dizia era: “Então, você quer ser um policial, não é mesmo, herói?” Eu lhe direi o que isso representa, quando você puder me dizer que “gosto” isso tem. Então você poderá se considerar um policial de verdade.”

Ouvi essa frase peculiar algumas dezenas de vezes. Eu e meus parceiros todos tínhamos nossos palpites sobre o que realmente significaria aquele papo de que “gosto” teria a profissão de policial. Alguns acreditavam ser o gosto do nosso próprio sangue após um confronto mais acirrado. Outros pensavam que seria o gosto do suor após um longo dia de trabalho. Tendo enfim completando um ano no departamento, achava que já sabia tudo o que precisava saber.

Então uma tarde, reuni coragem e me dirigi a ele. Quando olhou para mim lhe disse: “Quer saber de uma coisa, acho que já mereço reconhecimento. Estive numa porção de confrontos, fiz um monte de prisões e suei minha camisa como todo mundo por aqui. Portanto, o que significa aquela charada que você vive dizendo?” Com isso, ele simplesmente respondeu: “Bem, tendo em vista o que disse ter feito, diga você qual significado ela tem, herói”. Então, como não tive resposta, ele balançou a cabeça e grasnou: novinhos! E foi embora.

A noite seguinte foi a pior até hoje. Começou calma, mas com o passar do tempo as ocorrências foram ficando mais e mais freqüentes e perigosas. Fiz algumas pequenas abordagens e então uma delas se arrastou para uma luta, mas acabei concluindo a prisão sem ferimentos maiores no suspeito ou em mim mesmo. Após isso, eu estava louco para encerrar meu plantão e tomar o rumo de casa e ter finalmente com minha filha e esposa.

Tinha acabado de dar uma olhada no relógio e faltavam cinco minutos para eu me mandar para casa. Não sei se foi o cansaço ou foi minha imaginação, mas quando me dirigi a uma rua mais abaixo na minha área de patrulha, achei que tinha visto minha filha no portão de uma das residências dali. Olhei novamente e vi que não era minha filha, mas uma outra criança mais ou menos de sua idade. Tinha provavelmente uns seis ou sete anos e vestia uma camiseta de adulto que batia nos seus pés. Segurava uma boneca de pano nos braços que parecia ser mais velha que eu.

Imediatamente parei a viatura para ver o que ela fazia sozinha fora de casa àquela hora da noite. Quando me aproximei, notei um leve sinal de alívio em seu pequeno rosto. Tive de rir para mim mesmo, achando que ela via seu herói policial vindo salvá-la! Ajoelhei-me a seu lado e perguntei o que estava fazendo ali fora.

Então ela disse: “Mamãe e papai acabaram de ter uma grande briga e agora minha mãe não quer acordar”. Minha cabeça deu voltas. O que faço agora? Imediatamente chamei por reforços e corri para a janela mais próxima. Quando olhei para dentro vi um homem sobre uma mulher com as mãos cobertas de sangue, o sangue dela. Arrombei a porta e empurrei o homem para o lado e chequei a vítima. Não encontrei sinais vitais algum. Imediatamente algemei o suspeito e comecei a realizar RCP (ressuscitação cardio pulmonar) na mulher.

Foi quando ouvi uma vozinha atrás de mim: “Sr. Policial, por favor, faça minha mãe acordar”. Continuei a realizar RCP até que o reforço e a ambulância chegassem, mas então eles disseram que já era tarde demais. Ela estava morta. Olhei para o homem e ele disse: “Não sei o que aconteceu direito. Ela estava gritando comigo para eu parar de beber e procurar emprego e simplesmente não agüentei mais. Apenas a empurrei para que me deixasse em paz e ela caiu e bateu a cabeça.” Quando estava conduzindo o homem algemado para a viatura lá fora, avistei novamente a menina. Em cinco minutos eu tinha passado de herói a monstro. Não apenas fui incapaz de ressuscitar sua mãe e ainda estava levando seu pai embora também.

Antes de deixar o local, pensei que poderia falar com a criança para dizer-lhe algo, sei lá. Talvez apenas dizer-lhe que sentia muito sobre seus pais, mas quando tentei me aproximar ela se virou e percebi quão inútil seria aquilo tudo e que provavelmente ainda pioraria mais as coisas.

Mais tarde, sentado no vestiário da delegacia, continuei repassando toda aquela coisa na minha cabeça. Talvez se tivesse sido mais rápido ou feito algo diferente, aquela garotinha ainda teria sua mãe. E mesmo que isso pareça egoísta, eu ainda seria um herói... Foi quando senti uma pesada mão nos meus ombros e ouvi aquela tão familiar questão novamente: “Afinal, herói, que gosto tem?”

Antes que pudesse ficar indignado ou gritasse alguma resposta sarcástica, dei-me conta de que toda a emoção até então reprimida tinha transbordado a superfície e já havia uma cascata de lágrimas correndo no meu rosto. Foi naquele instante que me dei conta da resposta para aquela famosa questão: tinha gosto de lágrimas.

Com aquilo, ele começou a ir embora, mas parou e disse: “Saiba de uma coisa, não havia nada que você pudesse fazer diferente. Às vezes você pode fazer tudo certo e ainda assim o resultado ser o mesmo. Você pode não ser o herói que achou que era, mas agora você é um Policial de verdade”.


Testemunho citado no livro: “On Combat: The Psychology and Physiology of Deadly Conflict in War and in Peace ” by Dave Grossman with Loren W. Christensen.
Traduzido pelo APF Herald Tabosa de Cordova, DPF/DF.

sábado, 14 de setembro de 2013

Césio 137 - O brilho da morte e a ação dos policiais.



 Tudo começou em Setembro de 1987 na cidade de Goiânia quando a falta de informação encontrou a irresponsabilidade.
Dois catadores de sucatas vasculhavam as instalações de um antigo hospital, Instituto Goiano de Radioterapia, que já havia sido desativado mas estavam ali à procura de materiais que pudessem ser vendidos. Em uma das salas foi encontrado um antigo aparelho de radioterapia que estava abandonado no local, por saberem que a peça era pesada e poderia ser valiosa a carregaram para casa em um carrinho de mão e alí dariam início à contaminação do que veio a ser o maior acidente radiológico do MUNDO.

 Ao levar o material para casa, os sucateiros não se importavam com o que era e de quem era apenas se interessavam no valor que aquilo viria a ter para ambos.
Ao desmontar a cápsula eles acabaram sendo expostos à 19,26g de cloreto de Césio-137 que, visivelmente, se assemelha ao sal de cozinha e durante a noite apresenta uma cor azulada e brilhosa. Tocaram no isótopo, venderam as peças ao ferro velho, tiveram contato com outras pessoas e por ai foi... Meu intuito aqui não é lhes contar a história afinal vocês devem ter aprendido isso em suas aulas de química e/ou outras disciplinas, caso não conheça eu os aconselho a pesquisarem sobre pois foi algo que mudou a vida de várias pessoas, levando alguns à óbito e outras sofrem até hoje com consequências e descaso de autoridades.

 Na época foram chamados para conter a situação diversos bombeiros, guardas-civis e policiais militares. Estes, foram enviados para as áreas afetadas para conter a movimentação de pessoas nos locais de risco, segundo relatos, com a ordem de superiores que informaram que era somente um VAZAMENTO DE GÁS, ou seja, não informaram os policiais da REAL SITUAÇÃO e como  o conhecimento não era tão abrangente acreditaram e cumpriram seu dever. Ficaram ali por horas e horas, dias e dias  em contato com a contaminação sem proteção nenhuma, trajando somente suas fardas e ingênuidade. A ordem era simplesmente montar guarda no local e não deixar que as pessoas voltassem para as casas condenadas.

 Quando a primeira vítima veio a falecer (Leide das Neves 6 anos) populares tentaram impedir que o sepultamento acontecesse. No cemitério, a garota foi enterrada em um caixão de chumbo e a polícia teve de interver na situação, novamente, estavam lá de prontidão. Com pedaços de cruz, pedras, gritos e esbravejamentos muitas pessoas que eram contra a política nuclear no Brasil fizeram uma algazarra no enterro da garota. Teve confronto entre 'manifestantes' e policiais.

 Hoje, 26 anos depois do acidente, o comandante geral da PMGO resolveu homenagear os guerreiros que trabalharam no local do acidente.


Policiais hoje em dia são subjugados por pessoas que se dizem 'revolucionárias' mas se esquecem que somos os famosos 'pau pra toda obra'.
 Tenho orgulho desses guerreiros que enfrentaram essa situação com honra e não fugiram ao dever. 

Seja para uma simples ocorrência ou para ajudar a conter um acidente nuclear.. Nós estamos aqui!

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

De professor a policial

Autor: George L. KirkhamProfessor assistente da Escola de Criminologia da Universidade da Flórida

Como professor de Criminologia, tive problemas durante algum tempo, devido ao fato de que, seguindo a maioria daqueles que escrevem livros sobre assuntos policiais, eu nunca havia sido policial. Contudo, alguns elementos da comunidade acadêmica norte-americana, tal como eu, agiram muitas vezes precipitadamente ao apontar erros da nossa polícia. Dos incidentes que lemos nos jornais, formamos imagens estereotipadas, como as do policial violento, racista, venal ou incorreto. O que não vemos são os milhares de dedicados agentes da polícia, homens e mulheres, lutando e resolvendo problemas difíceis para preservar nossa sociedade e tudo que nos é caro.

Muitos dos meus alunos tinham sido policiais, e eles várias vezes opunham às minhas críticas o argumento de que uma pessoa só poderia compreender o que um agente da polícia tem de suportar quando se sentisse na pele de um policial. Por fim, me decidi a aceitar o desafio. Entraria para a polícia e, assim, iria testar a exatidão daquilo que vinha ensinando. Um dos meus alunos (um jovem agente que gozava licença para freqüentar o curso, pertencente à Delegacia de Polícia de Jacksonville, Flórida) me incitou a entrar em contato com o Xerife Dale Carson e o Vice-Xerife D. K. Brown e explicar-lhes minha pretensão.

Lutando por um distintivo.
Jacksonville parecia-me o lugar ideal. Um porto marítimo e um centro industrial em crescimento acelerado. Ali ocorriam, também, manifestações dos maiores problemas sociais que afligem nossos tempos: crime, delinqüência, conflitos raciais, miséria e doenças mentais. Tinha, igualmente, a habitual favela e o bairro reservado aos negros. Sua força policial, composta por 800 elementos, era tida como uma das mais evoluídas dos Estados Unidos.

Esclareci ao Xerife Carson e ao Vice-Xerife Brown de que pretendia um lugar não como observador, mas como patrulheiro uniformizado, trabalhando em expediente integral durante um período de quatro a seis meses. Eles concordaram, mas impuseram também a condição de que eu deveria, primeiro, preencher os mesmos requisitos que qualquer outro candidato a policial, uma investigação completa do caráter, exame físico, e os mesmos programas de treinamento. Haveria outra condição com a qual concordei prontamente em nome da moral. Todos os outros agentes deviam saber quem eu era e o que estava fazendo ali. Fora disso, em nada eu me distinguiria de qualquer agente, desde o meu revólver Smith and Wesson .38 até o distintivo e o uniforme.

O maior obstáculo foram as 280 horas de treinamento estabelecidas por lei. Durante quatro meses (quatro horas por noite e cinco noites por semana), depois das tarefas de ensino teórico, eu aprendia como utilizar uma arma, como aproximar-me de um edifício na escuridão, como interrogar suspeitos, investigar acidentes de trânsito e recolher impressões digitais. Por vezes, à noite, quando regressava a casa depois de horas de treinamento de luta para defesa pessoal, com os músculos cansados, pensava que estava precisando era de um exame de sanidade mental por ter-me metido naquilo. Finalmente, veio a graduação e, com ela, o que viria a ser a mais compensadora experiência da minha vida.

Patrulhando a rua.

Ao escrever este artigo, já completei mais de 100 rondas como agente iniciado, e tantas coisas aconteceram no espaço de seis meses que jamais voltarei a ser a mesma pessoa. Nunca mais esquecerei também o primeiro dia em que montei guarda defronte à porta da Delegacia de Jacksonville. Sentia-me, ao mesmo tempo, estúpido e orgulhoso no meu novo uniforme azul e com a cartucheira de couro.

A primeira experiência daquilo que eu chamo de minhas “lições de rua” aconteceu logo de imediato. Com meu colega de patrulha, fui destacado para um bar, onde havia distúrbios, no centro da zona comercial da cidade. Encontramos um bêbado robusto e turbulento que, aos gritos, se recusava a sair. Tendo adquirido certa experiência em admoestação correcional, apressei-me a tomar conta do caso. “Desculpe, amigo”, disse eu sorridente, “não quer dar uma chegadinha aqui fora para bater um papo comigo?” O homem me encarou incrédulo, com os olhos vermelhos. Cambaleou e me deu um empurrão no ombro. Antes que eu tivesse tempo de me recuperar, chocou-se de novo comigo e, desta vez, fazendo saltar da dragona a corrente que prendia meu apito. Após breve escaramuça, conseguimos levá-lo para a radiopatrulha.

Como professor universitário, eu estava habituado a ser tratado com respeito e deferência e, de certo modo, presumia que isso iria continuar assim em minhas novas funções. Estava porém, aprendendo que meu distintivo e uniforme, longe de me protegerem do desrespeito, muitas vezes atuavam como um imã atraindo indivíduos que odiavam o que eu representava. Confuso, olhei para meu colega, que apenas sorriu.

Teoria e prática.
Nos dias e semanas seguintes, eu iria aprender mais coisas. Como professor, sempre procurava transmitir aos meus alunos a idéia de que era errado exagerar o exercício da autoridade, tomar decisões por outras pessoas ou nos basearmos em ordens e mandatos para executar qualquer tarefa. Como agente de polícia, porém, fui muitas vezes forçado a fazer exatamente isso. Encontrei indivíduos que confundiam gentileza com fraqueza – o que se tornava um convite à violência. Também encontrei homens, mulheres e crianças que, com medo ou em situações de desespero, procuravam auxílio e conselhos no homem uniformizado.

Cheguei à conclusão de que existe um abismo entre a forma como eu, sentado calmamente no meu gabinete com ar condicionado, conversava com o ladrão ou assaltante à mão armada, e a maneira pela qual os patrulheiros lidam com esses homens – quando eles se mostram violentos, histéricos ou desesperados. Esses agressores, que anteriormente me pareciam tão inocentes, inofensivos e arrependidos depois do crime cometido, como agente de polícia, eu os encarava pela primeira vez como uma ameaça à minha segurança pessoal e a da nossa própria sociedade.
Aprendendo com o medo.
Tal como o crime, o medo deixou de ser um conceito abstrato para mim, e se tornou algo bem real, que por várias vezes senti: era a estranha impressão em meu estômago, que experimentava ao me aproximar de uma loja onde o sinal de alarme fora acionado; era uma sensação de boca seca quando, com as lâmpadas azuis acesas e a sirena do carro ligada, corríamos para atender a uma perigosa chamada onde poderia haver tiroteio.
Recordo especialmente uma dramática lição no capítulo do medo. Num sábado à noite, patrulhava com meu colega uma zona de bares mal freqüentados e casas de bilhares, quando vimos um jovem estacionar o carro em fila dupla. Dirigimo-nos para o local, e eu pedi que arrumasse devidamente o automóvel, ou então que fosse embora, ao que ele respondeu inopinadamente com insultos. Ao sairmos da radiopatrulha e nos aproximarmos do homem, a multidão exaltada começou a nos rodear. Ele continuava a nos insultar, recusando-se a retirar o carro. Então, tivemos que prendê-lo. Quando o trouxemos para a viatura da polícia, a turba nos cercou completamente. Na confusão que se seguiu, uma mulher histérica abriu meu coldre e tentou sacar meu revólver.

De súbito, eu estava lutando para salvar minha vida. Recordo a sensação de verdadeiro terror que senti ao premir o botão do armeiro na radiopatrulha onde se encontravam nossas armas longas. Até então, eu sempre tinha defendido a opinião de que não devia ser permitido aos policiais o uso de armas longas, pelo aspecto “agressivo” que denotavam, mas as circunstâncias daquele momento fizeram mudar meu ponto de vista, porque agora era minha vida que estava em risco. Senti certo amargor quando, logo na noite seguinte, voltei a ver, já em liberdade, o indivíduo que tinha provocado aquele quase motim – e mais amargurado fiquei quando ele foi julgado e, confessando-se culpado, condenaram-no a uma pena leve por “violação da ordem”.

Vítimas silenciosas.
Dentre todas as trágicas vítimas que vi durante seis meses, uma se destaca. No centro da cidade, num edifício de apartamentos, vivia um homem idoso que tinha um cão. Era motorista de ônibus aposentado. Encontrava-os quase sempre na mesma esquina, quando me dirigia para o serviço, e por vezes me acompanhavam durante alguns quarteirões.

Certa noite fomos chamados por causa de um tiroteio numa rua perto do edifício. Quando chegamos, o velho estava estendido de costas no meio de uma grande poça de sangue. Fora atingido no peito por uma bala e, em agonia, me sussurrou que três adolescentes o tinham interceptado e lhe exigiram dinheiro. Quando viram que tinha tão pouco, dispararam e o abandonaram na rua.

Em breve, comecei a sentir os efeitos daquela tensão diária a que estava sujeito. Fiquei doente e cansado de ser ofendido e atacado por criminosos que depois seriam quase sempre julgados por juizes benevolentes e por jurados dispostos a conceder aos delinqüentes “nova oportunidade de se reintegrarem ao convívio da sociedade”. Como professor de Criminologia, eu dispunha do tempo que queria para tomar decisões difíceis. Como policial, no entanto, era forçado a fazer escolhas críticas em questão de segundos (prender ou não prender, perseguir ou não perseguir), sempre com a incômoda certeza de que outros, aqueles que tinham tempo para analisar e pensar, estariam prontos para julgar e condenar aquilo que eu fizera ou aquilo que não havia feito.

Como policial, muitas vezes fui forçado a resolver problemas humanos incomparavelmente mais difíceis daqueles que enfrentara para solucionar assuntos correcionais ou de sanidade mental: rixas familiares, neuroses, reações coletivas perigosas de grandes multidões, criminosos. Até então, estivera afastado de toda espécie de miséria humana que faz parte do dia-a-dia da vida de um policial.

Bondade em uniforme.
Freqüentemente, fiquei espantado com os sentimentos de humanidade e compaixão que pareciam caracterizar muitos dos meus colegas agentes da polícia. Conceitos que eu considerava estereotipados eram, muitas vezes, desmentidos por atos de bondade: um jovem policial fazendo respiração boca-a-boca num imundo mendigo, um veterano grisalho levando sacos de doces para as crianças dos guetos, um agente oferecendo a uma família abandonada dinheiro que provavelmente não voltaria a reaver.

Em conseqüência de tudo isso, cheguei a humilhante conclusão de que tinha uma capacidade bastante limitada para suportar toda a tensão a que estava sujeito. Recordo em particular certa noite em que o longo e difícil turno terminara com uma perseguição a um carro roubado. Quando largamos o serviço, eu me sentia cansado e nervoso. Com meu colega, estava me dirigindo para um restaurante a fim de comer qualquer coisa, quando ouvimos o som de vidros que se partiam, proveniente de uma igreja próxima, e vimos dois adolescentes cabeludos fugindo do local. Nós os alcançamos e pedi a um deles que se identificasse. Ele me olhou com desprezo, xingou-me e virou as costas com intenção de se afastar. Não me lembro do que senti. Só sei que o agarrei pela camisa, colei seu nariz bem no meu e rosnei: “Estou falando com você, seu cretino!”

Então meu colega me tocou no ombro, e ouvi sua confortante voz me chamando à razão: “Calma, companheiro!” Larguei o adolescente e fiquei em silêncio durante alguns segundos. Depois me recordei de uma das minhas lições, na qual dissera aos alunos: “O sujeito que não é capaz de manter completo domínio sobre suas emoções, em todas as circunstâncias, não serve para policial”.

Desafio complicado. Muitas vezes perguntara a mim próprio: “Por que uma pessoa quer ser policial?” Ninguém está interessado em dar conselhos a uma família com problemas às três da madrugada de um domingo, ou em entrar às escuras num edifício que foi assaltado, ou em presenciar, dia após dia, a pobreza, os desequilíbrios mentais, as tragédias humanas. O que faz um policial suportar o desrespeito, as restrições legais, as longas horas de serviço com baixo salário, o risco de ser assassinado ou mutilado?

A única resposta que posso dar é baseada apenas na minha curta experiência como policial. Todas as noites eu voltava para casa com um sentimento de satisfação e de ter contribuído com algo para a sociedade – coisa que nenhuma outra tarefa me havia dado até então.

Todo agente de polícia deve compreender que sua aptidão para fazer cumprir a lei, com a autoridade que ele representa, é a única “ponte” entre a civilização e o submundo dos fora-da-lei. De certo modo, essa convicção faz com que todo o resto (o desrespeito, o perigo, os aborrecimentos) mereça que se façam quaisquer sacrifícios.

Extraído da Revista da Polícia Militar do Rio de Janeiro – n° 5 / Ano III – Agosto de 1988.

sábado, 6 de julho de 2013

"OVELHAS, LOBOS E CÃES PASTORES"


Autor: Dave Grossman, Ten Cel, Ranger, Ph.D., Autor de "On Killing"

Um veterano do Vietnã, um velho coronel da reserva, certa vez me disse: "A maioria das pessoas em nossa sociedade são ovelhas. Eles são criaturas produtivas, gentis, amáveis que só machucam umas às outras por acidente."

Isso é verdade. Lembre que a taxa de assassinatos é de 6 por 100.000, por ano, e taxa de agressões sérias é de 4 por 1000, por ano. O que isso significa é que a esmagadora maioria dos norte-americanos não são inclinados a machucarem uns aos outros.

Algumas estimativas dizem que dois milhões de americanos são vítimas de crimes violentos todo ano. Um número trágico, assustador, talvez um recorde em matéria de crimes violentos. Mas existem quase 300 milhões de americanos, o que significa que a chance de ser vítima de um crime violento ainda é consideravelmente menor que uma em cem, em qualquer ano. Ainda, como muitos dos crimes violentos são praticados pelas mesmas pessoas, o número real de cidadãos violentos é consideravelmente menor que dois milhões.

Há um paradoxo aí, e devemos pegar ambos os lados da situação: Nós podemos estar vivendo a época mais violenta da história, mas a violência ainda é surpreendentemente rara. Isso é porque a maioria dos cidadãos são pessoas gentis e decentes que não são capazes de machucarem umas às outras, exceto por acidente ou sob provocação extrema. Elas são ovelhas.

Eu não quero dizer nada negativo quando as chamo de ovelhas. Para mim a situação é como a de um ovo de passarinho. Na parte de dentro ele é gosmento e macio, mas algum dia ele se transformará em algo maravilhoso. Mas o ovo não pode sobreviver sem sua casca dura. Policiais, soldados e outros guerreiros, são como essa casca e, algum dia a civilização que eles protegem tornar-se-á algo maravilhoso. Por enquanto, eles precisam de guerreiros para protegê-los dos predadores.

"E então há os lobos", disse o velho veterano de guerra, "e os lobos alimentam-se das ovelhas sem perdão." Você acredita que há lobos lá fora que irão se alimentar do rebanho sem perdão? É bom que você acredite. Há homens perversos nesse mundo que são capazes de coisas perversas. NO INSTANTE EM QUE VOCÊ ESQUECE DISSO, OU FINGE QUE ISSO NÃO É VERDADE, VOCÊ SE TORNA UMA OVELHA. Não há segurança na negação.

"E então há os cães pastores", ele continuou, "e eu sou um cão pastor. Eu vivo para proteger o rebanho e confrontar o lobo."

Se você não tem capacidade para a violência, então você é um saudável e produtivo cidadão, uma ovelha. Se você tem capacidade para a violência e não tem empatia por seus concidadãos, então você é um sociopata agressivo, um lobo. Mas e se você tem capacidade para a violência e um amor profundo por seus semelhantes? O que você tem então? Um cão pastor, um guerreiro, alguém que anda no caminho do herói. Alguém que pode entrar no coração da escuridão, dentro da fobia humana universal e sair de novo.
Deixe-me desenvolver o excelente modelo de ovelhas, lobos e cães daquele velho soldado. Nós sabemos que as ovelhas vivem em negação da realidade, e isso é o que as faz ovelhas. Elas não querem aceitar o fato de que há mal neste mundo. Elas podem aceitar o fato de que incêndios podem acontecer, e é por isso que elas querem extintores, sprinklers, alarmes e saídas de incêndio em tudo quanto é canto das escolas de seus filhos.

Mas muitas delas ficam ultrajadas diante da idéia de colocar um policial armado na escola de seus filhos. Nossos filhos são milhares de vezes mais suscetíveis a serem mortos ou seriamente feridos por violência escolar do que por fogo, mas a única resposta da ovelha para a possibilidade de violência é a negação. A idéia de que alguém venha matar ou ferir seus filhos é muito dura, então elas escolhem o caminho da negação.

As ovelhas geralmente não gostam dos cães pastores. Ele parece muito com o lobo. Ele tem dentes afiados e a capacidade para a violência. A diferença, no entanto, é que o cão pastor não deve, não pode e não irá nunca machucar as ovelhas. Qualquer cão pastor que intencionalmente machuque a ovelhinha será punido e removido. O mundo não pode funcionar de outra maneira, pelo menos não em uma democracia representativa ou uma república como a nossa.

Ainda assim, o cão pastor incomoda a ovelha. Ele é uma lembrança constante que há lobos lá fora. As ovelhas prefeririam que ele não lhe dissesse para onde ir, não lhe aplicasse multas e nem ficasse nos aeroportos, com roupas camufladas e segurando um M-16. As ovelhas prefeririam que o cão guardasse suas garras e dentes, se pintasse de branco e dissesse: "Béé"

Até que o lobo aparece. Aí o rebanho inteiro tenta desesperadamente esconder-se atrás de um único cão.
Os estudantes, as vítimas, na escola de Columbine eram adolescentes, grandes e durões. Sob circunstâncias ordinárias, elas nunca gastariam algum tempo de seu dia para dizer algo a um policial. Elas não eram crianças ruins, elas simplesmente não teriam nada a dizer a um policial. Quando a escola estava sob ataque, no entanto, e os times da SWAT estavam entrando nas salas e corredores, os policiais tinham praticamente que arrancar os adolescentes que se agarravam às suas pernas, chorando. É assim que as ovelhinhas se sentem quando a respeito de seus cães pastores quando o lobo está na porta.

Olhe o que aconteceu depois do 11 de setembro, quando o lobo bateu forte na porta. Lembram-se de como os Estados Unidos, mais do que nunca, sentiu-se diferente a respeito de seus policiais e militares? Lembram-se de quantas vezes ouviu-se a palavra "herói"?

Entendam que não há nada moralmente superior em ser um cão pastor; é apenas aquilo que você escolhe ser. Entendam ainda que um cão pastor é uma criatura esquisita. Ele está sempre farejando o perímetro, latindo para coisas que fazem barulho durante a noite, e esperando ansiosamente por uma batalha. Os cães jovens anseiam por uma batalha, é melhor dizer. Os cães velhos são mais espertos, mas ao ouvir o som das armas e perceberem que são necessários eles se movem imediatamente, junto com os jovens.

É aqui que as ovelhas e cães pensam diferente. A ovelha faz de conta que o lobo nunca virá, mas o cão vive por aquele dia. Depois dos ataques de 11 de setembro, a maior parte das ovelhas, isto é, a maioria dos cidadãos nos Estados Unidos disse "Graças a Deus que eu não estava em um daqueles aviões". Os cães pastores, os guerreiros, disseram, "Meu Deus, eu gostaria de ter estado em um daqueles aviões. Talvez eu pudesse ter feito a diferença." Quando você está verdadeiramente transformado em um guerreiro, você quer estar lá. Você quer tentar fazer a diferença.

Não há nada de moralmente superior sobre o cão, o guerreiro, mas ele leva vantagem em uma coisa. Apenas uma. E essa vantagem é a de que ele é capaz de sobreviver em um ambiente ou situação que destrói 98% da população.

Houve uma pesquisa alguns anos atrás com indivíduos condenados por crimes violentos. Esses presos estavam encarcerados por sérios e predatórios atos de violência: Assaltos, assassinatos e assassinatos de policiais. A GRANDE MAIORIA DISSE QUE ESCOLHIA SUAS VÍTIMAS PELA LINGUAGEM CORPORAL: ANDAR DESLEIXADO, COMPORTAMENTO PASSIVO E FALTA DE ATENÇÃO AO AMBIENTE. Eles escolhiam suas vítimas como os grandes felinos fazem na áfrica, quando eles selecionam aquele que parece menos capaz de se defender.

Algumas pessoas parecem destinadas a serem ovelhas e outras parecem ser geneticamente escolhidas para serem lobos ou cães. Mas eu acredito que a maior parte das pessoas pode escolher qual dos dois eles querem ser, e eu estou orgulhoso de dizer que mais e mais americanos estão escolhendo serem cães.

Sete meses depois do ataque de 11 de setembro, Todd Beamer foi homenageado em sua cidade natal, Cranbury, Nova Jersey. Todd, como vocês se lembram, era o homem no vôo 93, sobre a Pensilvânia, que ligou de seu celular para alertar um operador da United Airlines sobre o sequestro. Quando ele soube que outros três aviões haviam sido usados como armas, Todd largou o telefone e disse as palavras "Let's roll" o que as autoridades acreditam que tenha sido um sinal para os outros passageiros para confrontar os seqüestradores. Em uma hora, uma transformação ocorreu entre os passageiros - atletas, homens de negócios e pais - de ovelhas para cães pastores e juntos eles combateram os lobos, salvando um número indeterminado de vidas no chão.

"Não há salvação para o homem honesto, a não ser esperar todo o mal possível dos homens ruins." - Edmund Burke

Aqui é o ponto que eu gosto de enfatizar, especialmente para os milhares de policiais e soldados para os quais falo todo ano. Na natureza, as ovelhas, as ovelhas de verdade, nascem assim. Cães nascem assim, bem como os lobos. Eles não têm uma chance. Mas você não é uma criatura. Você é um ser humano, e como tal pode ser o que quiser. É uma decisão moral consciente.

Se você quer ser uma ovelha, então você pode ser uma ovelha e está tudo bem, mas você deve entender o preço a pagar. Quando o lobo vier, você e as pessoas que você ama morrerão se não houver um policial por perto para protegê-lo. Se você quer ser um lobo, tudo bem, mas os pastores o caçarão e você não terá nunca descanso, segurança, confiança ou amor. Mas se você quiser ser um cão pastor andar no caminho do guerreiro, então você deve tomar uma decisão consciente DIÁRIA de dedicar-se, equipar-se e preparar-se para aquele momento tóxico, corrosivo, quando o lobo vem bater em sua porta.

Quantos policiais, por exemplo, levam armas para a igreja? Elas estão bem escondidas em coldres de tornozelo, coldres de ombro, dentro dos cintos ou nas costas. A qualquer hora em que você estiver no culto ou na missa, há uma boa chance que um policial na sua congregação esteja armado. Você nunca saberia se havia ou não um indivíduo assim em seu local de adoração, até que o lobo aparece para massacrar você e as pessoas que você ama.

Eu estava treinando um grupo de policiais no Texas e, durante o intervalo, um policial perguntou a seu amigo se ele levava a arma para a igreja. O outro respondeu "Eu nunca vou desarmado à igreja" Eu perguntei porque ele tinha uma opinião tão firme a esse respeito, e ele me contou a respeito de um policial que ele conhecia que estava em um massacre em uma igreja em Fort Worth, Texas, em 1999. Nesse incidente, uma pessoa desequilibrada mentalmente entrou na igreja e abriu fogo, matando quatorze pessoas. Ele disse que o policial acreditava que ele podia ter salvo todas as vidas naquele dia se ele estivesse carregando sua arma. Seu próprio filho foi atingido, e tudo o que ele pôde fazer foi atirar-se sobre o corpo do garoto e esperar a morte. Aquele policial me olhou nos olhos e disse "Você tem idéia do quão difícil é viver consigo mesmo depois disso?

Alguns ficariam horrorizados se soubessem que esse policial estava na igreja armado. Eles o chamariam de paranóico e provavelmente o admoestariam. Ainda assim, esses mesmos indivíduos ficariam enfurecidos e pediriam que "cabeças rolassem" se descobrissem que os air-bags de seus carros estavam defeituosos, ou que os extintores de incêndio nas escolas de seus filhos não funcionavam. Eles podem aceitar o fato de que fogo e acidentes de trânsito podem acontecer e que deve haver medidas de segurança contra eles.

A única resposta deles ao lobo, no entanto, é a negação, e, frequentemente, sua única resposta ao cão pastor é a chacota e o desdém. Mas o cão pastor pergunta silenciosamente a si mesmo "Você tem idéia do quão duro seria viver consigo mesmo se seus entes queridos fossem atacados e mortos, e você ficasse ali impotente porque está despreparado para aquele dia?"

É a negação que transforma as pessoas em ovelhas. Ovelhas são psicologicamente destruídas pelo combate porque sua única defesa é a negação, que é contra produtiva e destrutiva, resultando em medo, impotência e horror, quando o lobo aparece.

A negação mata você duas vezes. Mata uma, no momento da verdade, quando você não está fisicamente preparado: você não trouxe sua arma, não treinou. Sua única defesa era o pensamento positivo. Esperança não é uma estratégia. A negação te mata uma segunda vez porque mesmo que você sobreviva fisicamente, você fica psicologicamente destroçado pelo seu medo, impotência e horror na hora da verdade.

Gavin de Becker coloca dessa maneira em "Fear Less", seu soberbo livro escrito após o 11/Set., leitura requerida para qualquer um tentando entender a atual situação global: "... a negação pode ser sedutora, mas ela tem um efeito colateral insidioso. Apesar de toda a paz de espírito que aqueles que negam a realidade supostamente alcançam por dizerem que as coisas não são tão sérias assim, a queda que eles sofrem quando ficam cara a cara com a violência é muito mais perturbadora."

A negação é uma situação de "poupe agora pague mais tarde", uma enganação, um contrato escrito só em letras miúdas. A longo prazo, a pessoa que nega acaba conhecendo a verdade em algum nível.

Assim, o guerreiro deve lutar para enfrentar a negação em todos os aspectos de sua vida, e preparar-se para o dia em que o mal chegará.

Se você é um guerreiro que é legalmente autorizado a carregar uma arma e você sai sem levar essa arma, então você se transforma em uma ovelha, fingindo que o homem mau não virá hoje. Ninguém pode estar ligado 24 horas por dia, 7 dias por semana, a vida inteira. Todos precisam de tempo de repouso. Mas se você está autorizado a portar uma arma e você sai sem ela, respire fundo e diga para si mesmo:
"BÉÉÉÉÉÉÉ..."

Essa história de ser uma ovelha ou um cão pastor não é uma questão de sim ou não. Não é um tudo ou nada. É uma questão de degraus, um continuum. De um lado está uma desprezível ovelha com a cabeça totalmente enfiada na terra, e no outro lado está o guerreiro completo. Poucas pessoas existem que estão completamente em um lado ou outro. A maioria de nós vive no meio termo. Desde 11 Set, quase todos nos Estados Unidos deram um passo acima nesse continuum, distanciando-se da negação. A ovelha deu alguns passos na direção de aceitar e apreciar seus guerreiros, e os guerreiros começaram a tratar seu trabalho com mais seriedade. O grau para o qual você se move nesse continuum, para longe da "ovelhice" e da negação, é o grau no qual você estará preparado para defender-se e a seus entes queridos, fisicamente e psicologicamente, na hora da verdade.

terça-feira, 21 de maio de 2013

Dez minutos para viver


Dez minutos para viver


Roberto Kusiak

Temporal anunciado no serviço de meteorologia. Mais uma noite chuvosa e sonolenta de serviço. Talvez um acidente para atender e mais nada. Era sempre assim. Estávamos um pouco desanimados. Gostávamos de noites agitadas, de correria, de perseguição à vagabundos, de prisões. Gostávamos de ser polícia, eu e meu parceiro. Dois veteranos, quase vinte anos de serviço. Corações já endurecidos ao longo dos anos. Não sentíamos pena de vagabundo, muito pelo contrário, sentíamos sim, uma vontade de mandá-los para o outro lado, de limpar a cidade. Não importava quanto sangue o vagabundo derramava. Como disse, nossos corações estavam muito bem guarnecidos por uma crosta intransponível de quase vinte anos de crimes, de sangue, de choros, gritos, tiros.

Paramos a viatura embaixo de um galpão da RFFSA para tomarmos um gole de café que eu sempre tinha comigo na viatura. Aproveitamos para desembaçar os vidros e esticar as pernas. Pelo rádio ouvimos a central despachar outra viatura para atender a um acidente na rodovia, grave, segundo o rádio-operador.

Não foi preciso palavras, apenas nos olhamos. Estávamos há mais de seis meses trabalhando juntos. Sabíamos, apenas pela troca de olhares, o que precisava ser feito. Jogamos os copos de café fora e saímos em direção ao acidente. A chuva aumentou. Vinha acompanhada de um vento muito forte que fazia a viatura balançar. Chegamos ao local do acidente antes da outra viatura, onde estavam dois colegas recém formados, inexperientes ainda. Também fui novato, ninguém nasce sabendo. Também colei as placas em momentos de tensão. Os anos encarregaram-se de me dar a experiência que hoje tenho.

O veículo havia saído da pista. Chocou-se contra um pinheiro no acostamento. O motorista estava preso nas ferragens, ainda vivo. Enquanto meu parceiro verificava as condições dos ocupantes do veículo, instantaneamente eu sinalizava a rodovia a fim de evitar outro acidente. Era sempre assim que fazíamos. Éramos mais que uma dupla, éramos uma equipe, nos desdobrávamos nas funções, automaticamente.

Quando a outra viatura chegou, orientei os colegas para sinalizarem melhor a rodovia. Nesse instante, meu parceiro que havia descido o barranco, gritou para um dos novatos.

- Desce aqui e me dá essa capa de chuva.
- Mas eu vou me molhar.
- Anda logo caralho. Tem um bebê aqui, porra. Desce.

Quando vi o novato chegando perto da viatura com o bebê no colo corri, abri a porta de trás para que ele colocasse o inocente no banco, onde verifiquei seus sinais vitais. Estava congelado, muito pálido. Apresentava sinais de hipotermia. Não pensamos duas vezes. Meu parceiro voltou para o veículo batido enquanto eu corria para o hospital com o bebê. Não havia tempo para esperar a chegada das ambulâncias. Acelerei aquela lata velha e saí cortando o temporal.

A pista estava encharcada, mal conseguia manter a viatura estável. Precisava correr e não podia. Olhava pelo retrovisor o bebê no banco de trás, imóvel. A chuva e o vento faziam a viatura balançar. O limpador do pára brisa estava ligado no máximo, mesmo assim não dava conta de mantê-lo livre da chuva. Uma agonia foi tomando conta de mim. Um aperto no peito. Uma vida estava em minhas mãos, a vida de um inocente. A imagem de minha filha apareceu como uma projeção na noite. Eu precisava correr.


Foram os oito quilômetros mais longos de minha vida. Do local do acidente, até o hospital. Pelo rádio da viatura pedi para que deixassem o hospital em alerta para quando eu chegasse. No meio do caminho cruzei com as ambulâncias do resgate. Pensei em interceptá-las, mas não dava tempo. Melhor continuar. Tentava em vão acelerar mais a viatura. A chuva e o vento aumentavam. Eu não podia por em risco aquela criatura. Minha agonia foi aumentando. O risco de uma aquaplanagem era enorme. Andava no limite. Um olho na pista, outro no bebê, imóvel no banco de trás.

Cheguei ao hospital e, para minha surpresa, não havia nenhuma equipe à minha espera. Caralho. Peguei o bebê em meus braços e abri a chutes a porta da emergência. Como sabia onde ficava a sala do atendimento, fui direto para lá. No caminho já ordenei que trouxessem cobertores. Sim, ordenei, não tinha tempo para pedir favor. Prontamente as enfermeiras atenderam. Coloquei o bebê sobre a maca e dei espaço para as enfermeiras e o médico trabalharem. Ele abriu os olhos, chorou. Procurou naquele ambiente um rosto familiar. Foi quando aquele pequeno olhar encontrou o meu. Ele estava vivo, sim, vivo. Segurei sua pequena mão por um instante. Senti aqueles dedos frágeis e gelados apertarem minha mão. Ele parou de chorar e me olhava, no fundo dos olhos. Tinha apenas seis meses de vida.

Precisava voltar ao local do acidente para ajudar os colegas. Avisei as enfermeiras que voltaria depois e que havia mais vítimas. Embarquei na viatura e saí rasgando a noite. Apesar do temporal no lado de fora. Baixei o vidro da viatura e deixei a chuva que batia em meu rosto, lavar os pedaços daquela parede intransponível que, até então, envolvia meu coração e que saía em forma de lágrimas pelos meus olhos.

Mais tarde, depois de todos os procedimentos, voltamos ao hospital. Dudu, o bebê, dormia, aquecido, como um anjo. O médico nos informou que ele não havia sofrido qualquer tipo de lesão. Mas, se não tivéssemos levado ele ao hospital naquele momento, teria morrido em menos de dez minutos por hipotermia.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

SER POLICIAL

Como POLICIAL, enfrentei O MAIOR CHOQUE CULTURAL DE MINHA VIDA, ao ter de argumentar com todo tipo de pessoas, do mendigo ao magistrado, entrar em todo tipo de ambiente, do meretrício ao monastério.
Como POLICIAL, fui PARTEIRO, quando não dava tempo de levar as grávidas ao hospital, na madrugada;
Fui psicólogo, quando um colega discutia com a esposa, diante da incompreensão dela, às vezes, com a profissão do marido;
Fui assistente social, quando tinha de confortar A MÃE DE ALGUMA VÍTIMA assassinada por não possuir algo de valor que o assaltante pudesse levar;
Fui pedreiro, ao participar de mutirões para reconstruir casas destruídas por enchentes;
Fui paramédico fracassado, AO VER UM COLEGA IR A ÓBITO A BORDO DA VIATURA;
Fui paramédico realizado, ao retirar uma espinha de peixe da garganta de uma criança;
Fui obrigado a me tornar gladiador em arenas repletas de terroristas, que são os membros de torcidas organizadas, em jogos de times pelos quais nem torço;
Como POLICIAL, sobrevivi graves acidentes com viaturas na ânsia de chegar rápido àquela residência onde a moça estava sendo estuprada ou na qual um idoso estava sendo espancado;
Fui juiz da vara cível, apaziguando ânimos de maridos e mulheres exaltados, que após a raiva uniam-se novamente e voltavam-se contra a POLÍCIA;
Fui juiz de pequenas causas, quando EM MINHA FOLGA, alguns vizinhos me procuravam para resolver SEUS problemas;
Fui o homem que quase perdeu a razão, ao flagrar um pai estuprando uma filha, ENQUANTO A MÃE O DEFENDIA;
Fui o cara que mudou TODOS os hábitos para sempre, andando em estado de alerta 25 horas/dia, sempre com um olho no peixe e outro no gato, confiando desconfiado.
Como POLICIAL, fui xingado, agredido, discriminado, vaiado, humilhado, espancado, rejeitado, incompreendido.
Na hora do bônus, ESQUECIDO;
Na hora do ônus, CONVOCADO.
Tive de tomar, em frações de segundo, decisões que os julgadores, no conforto de seus gabinetes, tiveram meses para analisar e julgar.
E mesmo hoje, calejado, ainda me deparo com coisas que me surpreendem, pois afinal AINDA sou humano.
Não queria passar pelo que passei, mas fui VOLUNTÁRIO, ninguém me laçou e me enfiou nessa missão, né? Observando-se por essa ótica, é fácil ser dito por quem está “DE FORA”, que minha opinião NÃO IMPORTA, ou que simplesmente, não existe.
AMO O QUE FAÇO E O FAÇO PORQUE AMO. Tanto que insisto em levar essa vida, sabendo que terei de passar por tudo de novo, a qualquer hora, em qualquer dia e em qualquer lugar.
E O FAREI, SEM RECLAMAR, NEM RECUAR.
Porque se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigia a sentinela.

sábado, 27 de abril de 2013

CARTA DA ESPOSA DE UM POLICIAL MILITAR

CARTA DA ESPOSA DE UM POLICIAL MILITAR
Sou esposa de POLICIAL, e às vezes sou agraciada com uma ou outra cartinha de um superior elogiando um grande feito do meu marido.

Mas querem saber?

Nunca ouvi um MUITO OBRIGADO por deixá-lo patrulhar todas as residências alheias numa noite chuvosa e fria... menos o próprio lar aconchegante;

Nunca ouvi um MUITO OBRIGADO por ter que passar Natais e Anos Novos sem o pai dos meus filhos, mas mesmo assim fazê-los acreditar que Papai Noel existe em todas as casas;

Nunca ouvi um MUITO OBRIGADO por segurar o choro de emoção ao ouvir sozinha o coraçãozinho do meu primeiro filho e me convencer que o seu pai precisava estar ausente;

Nunca ouvi um MUITO OBRIGADO por apoiar e incentivar o homem por trás do policial, forte, imparcial, justo e perseverante;

Nunca ouvi um MUITO OBRIGADO por passar meus aniversários sozinha pois meu companheiro está uma escala extra num jogo de futebol do qual nem participam os times que torcemos;

Nunca ouvi um MUITO OBRIGADO das entidades de preservação dos direitos humanos pela vida de um policial militar que se perdeu num confronto com todas espécies de bandidos cujas vidas parecem valer mais que as próprias almas dos policiais.

Mas nada importa, porque todos os dias ouço um "OBRIGADO", muitas vezes mudo, muitas vezes surdo, mas sempre verdadeiro... Esse obrigado vem do olhar de canseira do meu marido quando se deita, após o raiar dia... vem da sua mão áspera acariciando seu filhinho... vem do sorriso agradecido por ter uma "corporação" na sua casa, na sua família e nos seus amigos.

OBRIGADA SENHOR PELO POLICIAL MILITAR QUE É MEU MARIDO E POR TODOS OS OUTROS QUE VELAM POR NÓS.

E um obrigada orgulhoso a você que teve paciência de ler meu desabafo.

AMÉM!

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Eventos no Brasil














Apesar do meu ofício,
Não deixarei de falar aos quatro ventos,
O quanto estamos prestes a mostrar ao mundo, COMO NÃO SE FAZ SEGURANÇA.
É risível.
É patético.
É completamente sem cabimento.
Se pararmos para comparar os números entre o Rio de Janeiro e Boston, no que diz respeito à ESTRUTURA, iremos sentir uma vergonha enorme. E mesmo diante desse abismo, vimos o quanto é difícil conter o ÍMPETO TERRORISTA.
Gestores mafiosos, verdadeiros "Senhores do Crime", lançarão centenas de atletas e espectadores aos leões da INSEGURANÇA GENERALIZADA.

Por Sandro Araújo

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Direitos Humanos: Coisa de Polícia




Treze reflexões sobre
Polícia e direitos humanos
Durante muitos anos o tema “Direitos Humanos” foi considerado antagônico ao de
Segurança Pública. Produto do autoritarismo vigente no país entre 1964 e 1984 e da
manipulação, por ele, dos aparelhos policiais, esse velho paradigma maniqueísta cindiu
sociedade e polícia, como se a última não fizesse parte da primeira.
Polícia, então, foi uma atividade caracterizada pelos segmentos progressistas da sociedade,
de forma equivocadamente conceitual, como necessariamente afeta à repressão antidemocrática,
à truculência, ao conservadorismo. “Direitos Humanos” como militância, na
outra ponta, passaram a ser vistos como ideologicamente filiados à esquerda, durante toda
a vigência da Guerra Fria (estranhamente, nos países do “socialismo real”, eram vistos
como uma arma retórica e organizacional do capitalismo). No Brasil, em momento posterior
da história, à partir da rearticulação democrática, agregou-se a seus ativistas a pecha de
“defensores de bandidos” e da impunidade.
Evidentemente, ambas visões estão fortemente equivocadas e prejudicadas pelo
preconceito.
Estamos há mais de um década construindo uma nova democracia e essa paralisia de
paradigmas das “partes” (uma vez que assim ainda são vistas e assim se consideram),
representa um forte impedimento à parceria para a edificação de uma sociedade mais
civilizada.
Aproximar a policia das ONGs que atuam com Diretos Humanos, e vice-versa, é
tarefa impostergável para que possamos viver, a médio prazo, em uma nação que respire
“cultura de cidadania”. Para que isso ocorra, é necessário que nós, lideranças do campo dos
Direitos Humanos, desarmemos as “minas ideológicas” das quais nos cercamos, em um
primeiro momento, justificável , para nos defendermos da polícia, e que agora nos impedem de
aproximar-nos. O mesmo vale para a polícia.
Podemos aprender muito uns com os outros, ao atuarmos como agentes defensores da
mesma democracia.
Nesse contexto, à partir de quase uma década de parceria no campo da educação para
os direitos humanos junto à policiais e das coisas que vi e aprendi com a polícia, é que gostaria
de tecer as singelas treze considerações a seguir:
CIDADANIA, DIMENSÃO PRIMEIRA
1ª - O policial é, antes de tudo um cidadão, e na cidadania deve nutrir sua razão de ser.
Irmana-se, assim, a todos os membros da comunidade em direitos e deveres. Sua condição
de cidadania é, portanto, condição primeira, tornando-se bizarra qualquer reflexão fundada
sobre suposta dualidade ou antagonismo entre uma “sociedade civil” e outra “sociedade
policial”. Essa afirmação é plenamente válida mesmo quando se trata da Polícia Militar, que é
um serviço público realizado na perspectiva de uma sociedade única, da qual todos os
segmentos estatais são derivados. Portanto não há, igualmente, uma “sociedade civil” e outra
“sociedade militar”. A “lógica” da Guerra Fria, aliada aos “anos de chumbo”, no Brasil, é que se
encarregou de solidificar esses equívocos, tentando transformar a polícia, de um serviço à cidadania, em ferramenta para enfrentamento do “inimigo interno”. Mesmo após o
encerramento desses anos de paranoia, sequelas ideológicas persistem indevidamente,
obstaculizando, em algumas áreas, a elucidação da real função policial.
POLICIAL: CIDADÃO QUALIFICADO
2ª - O agente de Segurança Pública é, contudo, um cidadão qualificado: emblematiza o
Estado, em seu contato mais imediato com a população. Sendo a autoridade mais
comumente encontrada tem, portanto, a missão de ser uma espécie de “porta voz” popular
do conjunto de autoridades das diversas áreas do poder. Além disso, porta a singular
permissão para o uso da força e das armas, no âmbito da lei, o que lhe confere natural e
destacada autoridade para a construção social ou para sua devastação. O impacto sobre a
vida de indivíduos e comunidades, exercido por esse cidadão qualificado é, pois, sempre
um impacto extremado e simbolicamente referencial para o bem ou para o mal-estar da
sociedade.
POLICIAL: PEDAGOGO DA CIDADANIA
3ª - Há, assim, uma dimensão pedagógica no agir policial que, como em outras
profissões de suporte público, antecede as próprias especificidades de sua especialidade.
Os paradigmas contemporâneos na área da educação nos obrigam a repensar o
agente educacional de forma mais includente. No passado, esse papel estava reservado
únicamente aos pais, professores e especialistas em educação. Hoje é preciso incluir com
primazia no rol pedagógico também outras profissões irrecusavelmente formadoras de opinião:
médicos, advogados, jornalistas e policiais, por exemplo.
O policial, assim, à luz desses paradigmas educacionais mais abrangentes, é um pleno
e legitimo educador. Essa dimensão é inabdicável e reveste de profunda nobreza a função
policial, quando conscientemente explicitada através de comportamentos e atitudes.
A IMPORTÂNCIA DA AUTO-ESTIMA
PESSOAL E INSTITUCIONAL
4ª - O reconhecimento dessa “dimensão pedagógica” é, seguramente, o caminho mais
rápido e eficaz para a reconquista da abalada autoestima policial. Note-se que os vínculos de
respeito e solidariedade só podem constituir-se sobre uma boa base de autoestima. A
experiência primária do “querer-se bem” é fundamental para possibilitar o conhecimento de
como chegar a “querer bem o outro”. Não podemos viver para fora o que não vivemos para
dentro.
Em nível pessoal, é fundamental que o cidadão policial sinta-se motivado e orgulhoso
de sua profissão. Isso só é alcançável à partir de um patamar de “sentido existencial”. Se a
função policial for esvaziada desse sentido, transformando o homem e a mulher que a exercem
em meros cumpridores de ordens sem um significado pessoalmente assumido como ideário, o
resultado será uma autoimagem denegrida e uma baixa autoestima.
Resgatar, pois, o pedagogo que há em cada policial, é permitir a ressignificação da
importância social da polícia, com a consequente consciência da nobreza e da dignidade dessa
missão.
A elevação dos padrões de autoestima pode ser o caminho mais seguro para uma boa
prestação de serviços. Só respeita o outro aquele que se dá respeito a si mesmo.
POLÍCIA E ‘SUPEREGO’ SOCIAL
5ª - Essa “dimensão pedagógica”, evidentemente, não se confunde com “dimensão
demagógica” e, portanto, não exime a polícia de sua função técnica de intervir preventivamente
no cotidiano e repressivamente em momentos de crise, uma vez que democracia nenhuma se
sustenta sem a contenção do crime, sempre fundado sobre uma moralidade mal constituída e
hedonista, resultante de uma complexidade causal que vai do social ao psicológico.
Assim como nas famílias é preciso, em “ocasiões extremas”, que o adulto sustente,
sem vacilar, limites que possam balizar moralmente a conduta de crianças e jovens, também
em nível macro é necessário que alguma instituição se encarregue da contenção da sociopatia.
A polícia é, portanto, uma espécie de superego social indispensável em culturas
urbanas, complexas e de interesses conflitantes, contenedora do óbvio caos a que estaríamos
expostos na absurda hipótese de sua inexistência. Possivelmente por isso não se conheça
nenhuma sociedade contemporânea que não tenha assentamento, entre outros, no poder da
polícia. Zelar, pois, diligentemente, pela segurança pública, pelo direito do cidadão de ir e vir,
de não ser molestado, de não ser saqueado, de ter respeitada sua integridade física e moral, é
dever da polícia, um compromisso com o rol mais básico dos direitos humanos que devem ser
garantidos à imensa maioria de cidadãos uns e trabalhadores.
Para isso é que a polícia recebe desses mesmos cidadãos a unção para o uso da
força, quando necessário.
RIGOR versus VIOLÊNCIA
6ª - O uso legítimo da força não se confunde, contudo, com truculência.
A fronteira entre a força e a violência é delimitada, no campo formal, pela lei, no
campo racional pela necessidade técnica e, no campo moral, pelo antagonismo que deve
reger a metodologia de policiais e criminosos.
POLICIAL versus CRIMINOSO:
METODOLOGIAS ANTAGÔNICAS
7ª - Dessa forma, mesmo ao reprimir, o policial oferece uma visualização pedagógica,
ao antagonizar-se aos procedimentos do crime.
Em termos de inconsciente coletivo, o policial exerce função educativa arquetípica:
deve ser “o mocinho”, com procedimentos e atitudes coerentes com a “firmeza moralmente
reta”, oposta radicalmente aos desvios perversos do outro arquétipo que se lhe contrapõe: o
bandido.
Ao olhar para uns e outros, é preciso que a sociedade perceba claramente as
diferenças metodológicas ou a “confusão arquetípica” intensificará sua crise de moralidade,
incrementando a ciranda da violência. Isso significa que a violência policial é geradora de mais
violência da qual, mui comumente, o próprio policial torna-se a vítima.
Ao policial, portanto, não cabe ser cruel com os cruéis, vingativo contra os antissociais,
hediondo com os hediondos. Apenas estaria com isso, liberando, licenciando a sociedade para
fazer o mesmo, à partir de seu patamar de visibilidade moral. Não se ensina a respeitar desrespeitando, não se pode educar para preservar a vida matando, não importa quem seja. O
policial jamais pode esquecer que também o observa o inconsciente coletivo.
A ‘VISIBILIDADE MORAL’ DA POLÍCIA: IMPORTÂNCIA DO EXEMPLO
8ª - Essa dimensão “testemunhal”, exemplar, pedagógica, que o policial carrega
irrecusavelmente é, possivelmente, mais marcante na vida da população do que a própria
intervenção do educador por ofício, o professor.
Esse fenômeno ocorre devido à gravidade do momento em que normalmente o policial
encontra o cidadão. À polícia recorre-se, como regra, em horas de fragilidade emocional, que
deixam os indivíduos ou a comunidade fortemente “abertos” ao impacto psicológico e moral da
ação realizada.
Por essa razão é que uma intervenção incorreta funda marcas traumáticas por anos ou
até pela vida inteira, assim como a ação do “bom policial” será sempre lembrada com
satisfação e conforto.
Curiosamente, um significativo número de policiais não consegue perceber com clareza
a enorme importância que têm para a sociedade, talvez por não haverem refletido
suficientemente a respeito dessa peculiaridade do impacto emocional do seu agir sobre a
clientela. Justamente aí reside a maior força pedagógica da polícia, a grande chave para a
redescoberta de seu valor e o resgate de sua autoestima.
É essa mesma “visibilidade moral” da polícia o mais forte argumento para convencê-la
de sua “responsabilidade paternal” (ainda que não paternalista) sobre a comunidade. Zelar pela
ordem pública é, assim, acima de tudo, dar exemplo de conduta fortemente baseada em
princípios. Não há exceção quando tratamos de princípios, mesmo quando está em questão a
prisão, guarda e condução de malfeitores. Se o policial é capaz de transigir nos seus princípios
de civilidade, quando no contato com os sociopatas, abona a violência, contamina-se com o
que nega, conspurca a normalidade, confunde o imaginário popular e rebaixa-se à igualdade
de procedimentos com aqueles que combate.
Note-se que a perspectiva, aqui, não é refletir do ponto de vista da “defesa do bandido”,
mas da defesa da dignidade do policial.
A violência desequilibra e desumaniza o sujeito, não importa com que fins seja
cometida, e não restringe-se a áreas isoladas, mas, fatalmente, acaba por dominar-lhe toda a
conduta. O violento se dá uma perigosa permissão de exercício de pulsões negativas, que
vazam gravemente sua censura moral e que, inevitavelmente, vão alastrando-se em todas as
direções de sua vida, de maneira incontrolável.
“ÉTICA” CORPORATIVA versus ÉTICA CIDADÃ
9ª - Essa consciência da autoimportância obriga o policial a abdicar de qualquer lógica
corporativista.
Ter identidade com a polícia, amar a corporação da qual participa, coisas essas
desejáveis, não se podem confundir, em momento algum, com acobertar práticas abomináveis.
Ao contrário, a verdadeira identidade policial exige do sujeito um permanente zelo pela
“limpeza” da instituição da qual participa.
Um verdadeiro policial, ciente de seu valor social, será o primeiro interessado no
“expurgo” dos maus profissionais, dos corruptos, dos torturadores, dos psicopatas. Sabe que o
lugar deles não é polícia, pois, além do dano social que causam, prejudicam o equilíbrio psicológico de todo o conjunto da corporação e inundam os meios de comunicação social com
um marketing que denigre o esforço heroico de todos aqueles outros que cumprem
corretamente sua espinhosa missão. Por esse motivo, não está disposto a conceder-lhes
qualquer tipo de espaço.
Aqui, se antagoniza a “ética da corporação” (que na verdade é a negação de qualquer
possibilidade ética) com a ética da cidadania (aquela voltada à missão da polícia junto a seu
cliente, o cidadão).
O acobertamento de práticas espúrias demonstra, ao contrário do que muitas vezes
parece, o mais absoluto desprezo pelas instituições policiais. Quem acoberta o espúrio permite
que ele enxovalhe a imagem do conjunto da instituição e mostra, dessa forma, não ter qualquer
respeito pelo ambiente do qual faz parte.
CRITÉRIOS DE SELEÇÃO,
PERMANÊNCIA E ACOMPANHAMENTO
10ª - Essa preocupação deve crescer à medida em que tenhamos clara a preferência
da psicopatia pelas profissões de poder. Política profissional, Forças Armadas, Comunicação
Social, Direito, Medicina, Magistério e Polícia são algumas das profissões de encantada
predileção para os psicopatas, sempre em busca do exercício livre e sem culpas de seu poder
sobre outrem.
Profissões magníficas, de grande amplitude social, que agregam heróis e mesmo
santos, são as mesmas que atraem a escória, pelo alcance que têm, pelo poder que
representam.
A permissão para o uso da força, das armas, do direito a decidir sobre a vida e a morte,
exercem irresistível atração à perversidade, ao delírio onipotente, à loucura articulada.
Os processos de seleção de policiais devem tornar-se cada vez mais rígidos no
bloqueio à entrada desse tipo de gente. Igualmente, é nefasta a falta de um maior
acompanhamento psicológico aos policiais já na ativa.
A polícia é chamada a cuidar dos piores dramas da população e nisso reside um
componente desequilibrador. Quem cuida da polícia?
Os governos, de maneira geral, estruturam pobremente os serviços de atendimento
psicológico aos policiais e aproveitam muito mal os policiais diplomados nas áreas de saúde
mental.
Evidentemente, se os critérios de seleção e permanência devem tornar-se cada vez
mais exigentes, espera-se que o Estado cuide também de retribuir com salários cada vez mais
dignos.
De qualquer forma, o zelo pelo respeito e a decência dos quadros policiais não cabe
apenas ao Estado mas aos próprios policiais, os maiores interessados em participarem de
instituições livres de vícios, valorizadas socialmente e detentoras de credibilidade histórica. DIREITOS HUMANOS DOS POLICIAIS —HUMILHAÇÃO versus HIERARQUIA
11ª - O equilíbrio psicológico, tão indispensável na ação da polícia, passa também pela
saúde emocional da própria instituição. Mesmo que isso não se justifique, sabemos que
policiais maltratados internamente tendem a descontar sua agressividade sobre o cidadão.
Evidentemente, polícia não funciona sem hierarquia. Há, contudo, clara distinção entre
hierarquia e humilhação, entre ordem e perversidade.
Em muitas academias de polícia (é claro que não em todas) os policiais parecem ainda
ser “adestrados” para alguma suposta “guerra de guerrilhas”, sendo submetidos a toda ordem
de maus-tratos (beber sangue no pescoço da galinha, ficar em pé sobre formigueiro, ser
“afogado” na lama por superior hierárquico, comer fezes, são só alguns dos recentes exemplos
que tenho colecionado à partir da narrativa de amigos policiais, em diversas partes do Brasil).
Por uma contaminação da ideologia militar (diga-se de passagem, presente não
apenas nas PMs mas também em muitas polícias civis), os futuros policiais são, muitas vezes,
submetidos a violento estresse psicológico, a fim de atiçar-lhes a raiva contra o “inimigo” (será,
nesse caso, o cidadão?).
Essa permissividade na violação interna dos Direitos Humanos dos policiais pode dar
guarida à ação de personalidades sádicas e depravadas, que usam sua autoridade superior
como cobertura para o exercício de suas doenças.
Além disso, como os policiais não vão lutar na extinta guerra do Vietnã, mas atuar nas
ruas das cidades, esse tipo de “formação” (deformadora) representa uma perda de tempo,
geradora apenas de brutalidade, atraso técnico e incompetência.
A verdadeira hierarquia só pode ser exercida com base na lei e na lógica, longe,
portanto, do personalismo e do autoritarismo doentios.
O respeito aos superiores não pode ser imposto na base da humilhação e do medo.
Não pode haver respeito unilateral, como não pode haver respeito sem admiração. Não
podemos respeitar aqueles a quem odiamos.
A hierarquia é fundamental para o bom funcionamento da polícia, mas ela só pode ser
verdadeiramente alcançada através do exercício da liderança dos superiores, o que pressupõe
práticas bilaterais de respeito, competência e seguimento de regras lógicas e suprapessoais.
DIREITOS HUMANOS DOS POLICIAIS —HUMILHAÇÃO versus HIERARQUIA
12ª - No extremo oposto, a debilidade hierárquica é também um mal. Pode passar uma
imagem de descaso e desordem no serviço público, além de enredar na malha confusa da
burocracia toda a prática policial.
A falta de uma Lei Orgânica Nacional para a polícia civil, por exemplo, pode propiciar
um desvio fragmentador dessa instituição, amparando uma tendência de definição de conduta,
em alguns casos, pela mera junção, em “colcha de retalhos”, do conjunto das práticas de suas
delegacias.
Enquanto um melhor direcionamento não ocorre em plano nacional, é fundamental que
os estados e instituições da polícia civil direcionem estrategicamente o processo de maneira a
unificar sob regras claras a conduta do conjunto de seus agentes, transcendendo a mera
predisposição dos delegados localmente responsáveis (e superando, assim, a “ordem” fragmentada, baseada na personificação). Além do conjunto da sociedade, a própria polícia
civil será altamente beneficiada, uma vez que regras objetivas para todos (incluídas aí as
condutas internas) só podem dar maior segurança e credibilidade aos que precisam executar
tão importante e ao mesmo tempo tão intrincado e difícil trabalho.
A FORMAÇÃO DOS POLICIAIS
13ª - A superação desses desvios poderia dar-se, ao menos em parte, pelo
estabelecimento de um “núcleo comum”, de conteúdos e metodologias na formação de ambas
as polícias, que privilegiasse a formação do juízo moral, as ciências humanísticas e a
tecnologia como contraponto de eficácia à incompetência da força bruta.
Aqui, deve-se ressaltar a importância das academias de Polícia Civil, das escolas
formativas de oficiais e soldados e dos institutos superiores de ensino e pesquisa, como bases
para a construção da Polícia Cidadã, seja através de suas intervenções junto aos policiais
ingressantes, seja na qualificação daqueles que se encontram há mais tempo na ativa. Um
bom currículo e professores habilitados não apenas nos conhecimentos técnicos, mas
igualmente nas artes didáticas e no relacionamento interpessoal, são fundamentais para a
geração de policiais que atuem com base na lei e na ordem hierárquica, mas também na
autonomia moral e intelectual. Do policial contem-porâneo, mesmo o de mais simples escalão,
se exigirá, cada vez mais, discernimento de valores éticos e condução rápida de processos de
raciocínio na tomada de decisões.
CONCLUSÃO
A polícia, como instituição de serviço à cidadania em uma de suas demandas mais
básicas — Segurança Pública — tem tudo para ser altamente respeitada e valorizada.
Para tanto, precisa resgatar a consciência da importância de seu papel social e, por
conseguinte, a autoestima.
Esse caminho passa pela superação das sequelas deixadas pelo período ditatorial:
velhos ranços psicopáticos, às vezes ainda abancados no poder, contaminação anacrônica
pela ideologia militar da Guerra Fria, crença de que a competência se alcança pela truculência
e não pela técnica, maus-tratos internos a policiais de escalões inferiores, corporativismo no
acobertamento de práticas incompatíveis com a nobreza da missão policial.
O processo de modernização democrática já está instaurado e conta com a parceria de
organizações como a Anistia Internacional (que, dentro e fora do Brasil, aliás, mantém um
notável quadro de policiais a ela filiados).
Dessa forma, o velho paradigma antagonista da Segurança Pública e dos Direitos
Humanos precisa ser substituído por um novo, que exige desacomodação de ambos os
campos: “Segurança Pública com Direitos Humanos”.
O policial, pela natural autoridade moral que porta, tem o potencial de ser o mais
marcante promotor dos Direitos Humanos, revertendo o quadro de descrédito social e
qualificando-se como um personagem central da democracia. As organizações nãogovernamentais
que ainda não descobriram a força e a importância do policial como agente de
transformação, devem abrir-se, urgentemente, a isso, sob pena de, aferradas a velhos
paradigmas, perderem o concurso da ação impactante desse ator social.
Direitos Humanos, cada vez mais, também é coisa de polícia!