RICARDO BALESTRERI
O tema que neste momento nos
congrega,a Educação em Direitos Humanos na Área de Segurança e Justiça, é de
crucial importância para a história brasileira. Convido-os a refletirmos um
pouco sobre a fundamentalidade dos operadores de segurança pública - policiais,
bombeiros, guardas municipais - como agentes, promotores, sustentadores e qualificadores
da democracia, até para que, no âmbito adequado dos direitos humanos,possamos
repensar o sentido das instituições políciais, dos corpos de bombeiros, das guaradas.
Esse pensar crítico e construtivo de paradigmas novos para a área é tardio, reconheçamos,
na sociedade brasileira. Então, é preciso que nos aligeiremos, até mesmo em função
da crise sistêmica de violência e criminalidade que ameaça a todos os cidadãos.
Quero fazer tal reflexão à
partir da perspectiva de um militante de direitos humanos, que há
mais ou menos 30 anos vem
dedicando a vida a esta causa, e que, há uns 19 anos, descobriu
o valor de jogar seu maior
foco de atuação na área da segurança pública. Sei hoje, convictamente, que se
não trabalharmos educação em direitos humanos com a polícia, não
teremos as transformações
substanciais que buscamos para qualificar a democracia brasileira.
As profissões de operadores de
segurança pública talvez sejam aquelas de mais forte impacto coletivo. Assim,
como pessoa dedicada à militância pelos direitos humanos, em busca de um mundo
novo possível, sou profundamente grato por haver descoberto a polícia , os
bombeiros e os guardas. Trabalhar com eles enriquece sobremaneira minhas possibilidades
existenciais porque, ao atingi-los, sei que estamos atingindo a multidão que segue
- ainda que, na maioria das vezes, insconscientemente - a liderança e a referencialidade
que eles representam.
Todos sabemos -é quase uma
banalidade essa consciência- que o destino do Brasil passa necessariamente pela
educação do seu povo. Todos sabemos que não há nação que tenha construído
desenvolvimento humano que não o tenha feito através da educação. Se tomarmos
como exemplo o norte da Europa, precisaremos lembrar que aqueles países - muitas
vezes dignos da admiração planetária, por serem sociedades de bem-estar –
fizeram suas revoluções através da educação. A Noruega - para ilustar- hoje uma
potência em termos de justiça social, a menos de cem anos atrás era um País
pobre, constituído por um povo pobre. Se alguém lembrar que ela tem petróleo,
precisarei revidar com nossa autosuficiência, apesar das dimensões continentais
de nosso país e de nosso contingente populacional; Se alguém lembrar que ela
utilizou empréstimos internacionais, precisarei dizer que, fosse esse o
diferencial, aqui estaríamos vivendo em um paraíso. Não foi um país colonialista,
não é um império. Então, o que ocorreu por lá? A resposta é: a tecitura uma grande
rede de cidadania, gerada por um processo histórico de educação, que não se confundiu
e não se confunde com mera escolarização. Escolarização, sim, também, mas educar
não pode ser apenas incluir as pessoas na escola. Podemos escolarizar o povo
inteiro e ele continuará ignorante, se não o fizermos em uma perspectiva de
valores solidários.
A causa dos direitos humanos,
com o seu rol de valores é, assim, a meu ver, a grande alavanca da educação, a
melhor ferramenta civilizatória para o nosso intervir. Sabemos hoje, mesmo no
campo da economia, que um País não melhora a sua situação sem qualificar a sua
mão-de-obra. Ainda assim, não estamos falando de educação em toda a sua grandeza.
Estamos falando de uma pequena parte da educação, que é a
"instrução".
Confundimos, muitas vezes,
educação com instrucionismo. O sistema capitalista fala muito em "educar a
mão-de-obra". É um reducionismo. Precisamos, é verdade, instruir a mão-de-obra.
Mas só podemos educar as pessoas... Educar é, obrigatoriamente, refletir sobre valores,
provocar o desenvolvimento - no dizer piagetiano - de intelectualidades e moralidades
autônomas. Educar é estimular a capacidade de olhar criticamente para a realidade,
valorar aquilo que é olhado sob a perspectiva da convivência solidária, e tomar
decisões intelectuais autonomamente orientadas. Mas, mais do que decisões
intelectuais, educar é provocar posicionamentos atitudinais, práticos, que
tenham o poder de modificar e melhorar a qualidade da vida da gente e de nosso
entorno. Juízo moral, neste sentido, não é apenas discurso crítico, catarse
poliqueixosa.Discurso crítico é diferente de consciência crítica. No Brasil,
por exemplo, a gente se queixa muito, o tempo inteiro, dos poderosos, que não
modificam a qualidade das nossas vidas. Trata-se de um discurso e de uma expectativa
sebastianistas. Esperamos que alguém ou que alguma categoria social nos venha
tirar de nossa eterna miséria, ignorância, subdesenvolvimento. Esperamos e protestemos,há
mais de 500 anos, e isso não acontece. É porque discurso poliqueixoso não muda
nada e acomoda. E o exemplo, que "tem que vir de cima”? Tem? Mas não vem.
As elites não sentem-se nem de perto estimuladas pelas nossas esperanças
ingênuas. Na verdade, não mudamos a nós mesmos e à realidade que nos cerca
porque vivemos esperando o exemplo que tem que vir de cima. Não vai acontecer.
O zen-budismo está correto ao propor que a desilusão é uma benção. Enquanto
estamos iludidos, não fazemos nada. O exemplo nunca vem de cima. O exemplo
sempre vem de baixo. As dinâmicas de auto-preservação do poder a qualquer custo
- pela direita, pelo centro e inclusive pela esquerda - impedem que o exemplo
venha de cima. Assim, quando o poder se expressa com justiça, é mero reflexo.
Podemos ter e temos indivíduos nas elites que dão seu tom particular de bom
exemplo, mas isso não se reproduz em escala de classe. Não há, na história,
nenhum exemplo de suicídio de classe, pela abdicação coletiva de privilégios.
Quanta candura, a nossa! Ou
"arregaçamos as mangas" e fazemos um mundo diferente lá onde estamos
- onde somos professores, onde somos militantes de direitos humanos, onde somos
agentes de saúde, onde somos policiais, onde somos guardas, onde somos bombeiros
- ou esse mundo não será melhor jamais. Discurso e queixas não transformam a realidade!
É claro que tal consciência só
pode ser acessada através de um processo de educação para valores.Assim, não
pode haver desenvolvimento com bem-estar onde não há educação, e não pode haver
educação onde não se constroem as chamadas "redes de engajamento cívico".
Onde os cidadãos - de baixo pra cima - não se organizam, não mudam a própria vida,
é balela falar em transformação, é balela falar em bem-estar, é balela falar em
políticas públicas. Os governos sempre são o reflexo do nível de organização ou
de desorganização, de consciência ou de inconsciência, de mobilização ou de
desmobilização da população que, de maneira passiva ou ativa, os sustentam. É
uma crueldade dizer que "cada povo tem o governo que merece". Uma
crueldade e uma injustiça. O povo brasileiro, por exemplo, de forma geral
trabalhador, honesto, criativo e cordial, historicamente mereceria mais.
Contudo - em uma visão não paternalista - é justo, adequado e pedagógico reconhecermos
que cada povo é responsável pelos governos que tem. Passiva ou ativamente
responsável. Não resolve, portanto, implorarmos que alguém "lá em
cima" tenha uma crise de piedade, enquanto nós, eternos filhos e filhas,
aguardamos um "colinho" das autoridades, uma atençãozinha das elites,
uma benessezinha qualquer.
Tal reflexão encaixa-se
perfeitamente, também, na área da segurança pública.Precisamos substituir
velhos paradigmas. Se reconhecemos que educação é fundamental para transformar
e dar bem-estar ao país, precisamos, igualmente, perceber que os tradicionais modelos
e agentes da educação são insuficientes. Se, há 15 ou 20 anos, falássemos em "educadores",
a quem estaríamos lembrando? Com certeza, apenas dos professores e dos pais. Os
professores e os pais são educadores? Naturalmente. No mundo contemporâneo, contudo,
com sua dispersão fragmentadora, são insuficientes. Educação hoje, na
perspectiva piagetiana de construção da autonomia moral e intelectual, não pode
prescindir das categorias profissionais de mais forte impacto popular:
particularmente, os já citados professores, mas também, e com igual força, os
agentes de saúde e os operadores de segurança pública. Por que destacar essas
três? Porque têm a seu favor elementos coletivos que as diferenciam das demais.
Entre eles, fortes elementos de caráter simbólico. Agentes de saúde,
professores e operadores de segurança pública são as categorias emblemáticas do
poder público mais presente entre a população. E, ainda que seus estilos de
atuação possam ser muitas vezes questionáveis, não abandonaram o povo.
Lembremos, aqui, que vivemos em um país que entregou sua gente à orfandade.
Contudo, essa gente não foi abandonada pelos agentes de saúde, pelos
professores, pelos guardas, pelos policiais, pelos bombeiros, que-muitas vezes,
lamentavelmente - se portam inadequadamente, mas não se evadiram não se
retiraram, não são indiferentes. Desta forma, os convido a uma reflexão focada
em paradigma novo, onde se incluem, como categorias pedagógicas, os policiais,
os bombeiros, os guardas municipais.
Nesta altura da reflexão,
algum companheiro policial, por exemplo, pode pensar que "o povo também
nos maltrata, o povo não nos reconhece". Só aparentemente. Do ponto de vista
do inconsciente pessoal e coletivo, as pessoas têm no policial uma referência
paterna materna.
Tomando emprestadas as
ferramentas da psicanálise em relação ao papel da autoridade, não seria nenhuma
impropriedade dizermos que o operador e a operadora de segurança pública evocam
a figura do pai e da mãe. Não se confunda, contudo, o papel social
paterno-materno com qualquer forma de paternalismo ou maternalismo. No caso em questão,
tratamos de "pais" e "mães" que precisam encarnar
fortemente a função de balizadores, de contenedores e limitadores. Mas tal
tarefa é grandiosamente acolhedora e asseguradora, junto a uma população que,
como dissemos acima, é órfão de quase tudo. No caráter simbólico do impacto,
que ora discutimos, essa é uma das mais fundamentais razões da importância dos
operadores de segurança pública.
Se há um casamento entre a
potência simbólica e a postura atitudinal e comportamental dos
sujeitos, ou seja, se estamos
tratando de "bons policiais", essa postura paterno-materna, através
do exemplo, vai se fazer reproduzir entre a população como mudança qualitativa
de valores. Pais e mães são muito importantes porque indicam caminhos, através
de suas atitudes. Quando olho um policial na rua, com a dignidade que ele às
vezes desconhece que tem, sempre penso que não se trata de um mero ordenador da
segurança. Isso,como missão,
isoladamente, seria muito
pequeno e pobre para ele. Trata-se, muito mais, de uma liderança
popular. Mesmo que essa
liderança desconheça seu papel (inconsciência que atuará como elemento redutor
ou desviante). Se, ao contrário, houver assunção plena da vocação de cuidador
social, o policial carregará com ele, pelos melhores caminhos, a multidão do seu
entorno.
Como não é a conduta moral,
contudo, que define solitariamente a força do impacto, mas sim o mandato
popular de autoridade, um "mau policial" também carrega a multidão. Só
que para o abismo da permissividade, da violência, da corrupção. Quando os
"pais" se permitem também permitem, inconscientemente, aos
"filhos". É o chamado "paradoxo pedagógico". Não podemos
proibir o que fazemos, não podemos educar pelo discurso quando nossas práticas
dizem o contrário, não podemos construir o respeito se desrespeitamos, não
podemos conclamar ao que negamos. Ralph Emerson disse que "o que somos
fala tão alto que não se escuta o que dizemos". O que os policiais são
fala tão alto que não se escuta o que eles dizem. É por isso que os agentes de
segurança pública não podem atuar com base no senso comum, na lógica ordinária
da eliminação. Por desespero, por exaltação emocional, por emoções
explicavelmente desordenadas - diante da violência e da dor- o senso comum
propõe, na prática, que "problemas a gente não resolve, a gente elimina".
Propõe ao policial - em verdadeiro canto de sereia - que ele seja uma espécie
de herói as avessas, eliminando os que representam perigo. Contudo, se o
policial cede, acaba desprezado pelos mesmos que o persuadiram. É que, de
alguma forma, intuem que a autoridade não se deu o devido respeito, abdicou de
princípios, negociou o inegociável, burlou as regras que deveria defender e,
por isso, tornou-se, também, potencialmente perigosa. Além de tudo, aumentou a
sensação de solidão, de abandono moral, de falta de limites. Os
"pais" e as "mães" precisam fazer o que pregam, ter
firmeza, não ceder às chantagens emocionais e aos apelos do desequilíbrio.
Compreende-se que um cidadão reaja enfurecido diante da dor causada pela
violência e pelo crime. O Estado e seus agentes, contudo, precisam se pautar
pela cientificidade, pela racionalidade, pelo inabalável exemplo.
Usando novamente - com alguma
heterodoxia- de uma categoria da psicologia, poderíamos
dizer que os policiais são
figuras arquetípicas. Os junguianos dizim que os arquétipos são "estruturantes
da moralidade".
Grosso modo e com ousadia sintética,
arquétipos são como "figuras-símbolo", "pacotes simbólicos",
carregadores de um conjunto de características que expressam mas também constoem
o inconsciente coletivo.O policial, o guarda, o bombeiro, em tal contexto, bem
se encaixam no arquétipo heróico. Lembremos que toda educação moral se vale o
tempo todo de categorias arquetípicas. Minha geração, nos anos sessenta, teve a
sorte de contar, na então incipiente mídia eletrônica, com uma figura policial
arquetípica grandemente influente nos valores que muitos de nós íamos erigindo
como crianças: "o vigilante rodoviário", um policial com pinta de
herói, com discurso de herói e, o mais importante, com práticas de herói que
coadunavam com o discurso que propunha. Discordo de quem disse "pobre povo
o que precisa de heróis". Tal assertiva cai bem para os iluminados mas não
é pragmática e nem realista. O povo precisa, sim, de mitos heróicos, porque a
educação não ocorre de forma espontaneísta. A ausência e a conspurcação de tais
mitos é que nos tem levado a uma perigosa relativização absoluta de valores, ao
hedonismo, ao narcicismo, "a levar vantagem em tudo". Isso não quer
dizer que os policiais, por exemplo, precisem ser perfeitos, mas que não podem
abdicar de um mínimo de coerência com os princípios morais e as leis pelas
quais juraram zelar.O policial, o guarda municipal, o bombeiro, sempre estão
"na vitrine". Pode parecer um fardo para eles. Mas o fardo é leve se
tomarmos em conta que é precisamente do poder de impacto que reside sobre tal
exposição que brota a gloriosa realização de poder influir sobre os rumos da
sociedade. Para quem fez conscientemente sua escolha profissional, há, aí, o
caldo de cultura para uma vida plena de sentido. Por isso, todo operador de
segurança pública é potencialmente um agente de transformação social. Triste é
se ele não sabe disso e enterra no burocratismo ou na repressão desqualificada
os seus talentos, esquecendo que é um líder popular. Assim, educar os
operadores de segurança pública para os direitos humanos , não é meremente adestrá-los
no conhecimento das leis, pactos e tratados, mas resgatar, avivar nos mesmos, a
consciência da grandeza da missão que escolheram.
Se os policiais, guardas e
bombeiros souberem o valor que têm e o que representam para a sociedade, nem
precisaremos falar-lhes sobre os direitos humanos, porque serão, naturalmente,
os mais entusiásticos agentes promotores dos mesmos.